Diariamente, somos bombardeados por informações vindas de todos os lados. Recebemos notícias, indicadores, análises, e prognósticos que chegam dos cinco continentes. Apesar da enormidade de informações, quase sempre nos vemos incapazes de compreender o que ocorre. Este blog pretende ser uma contribuição para entender esse mundo complexo. É claro, não tem a pretensão de ser um oráculo, que dê conta de tudo o que ocorre no mundo, mas uma busca incessante de entender o que acontece à nossa volta.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A revolta no Bahrein e a Fórmula 1

Duas coisas aparentemente distintas estão se encontrando dramaticamente esta semana. O Grande Prêmio do Bahrein de Fórmula 1 e a revolta da população bareinita contra o rei Hamad ben Isa al-Khalifa. Não é a primeira vez que o esporte e a revolta colidem. Em 2011, o GP, marcado para março, foi cancelado devido à insegurança gerada pela revolta anti-governamental iniciada em fevereiro.
O Bahrein é mais um local onde acontecem revoltas populares contra seus líderes políticos, movimentos conhecidos na grande mídia como “Primavera Árabe”.
O rei Hamad al-Khalifa governa o Bahrein desde 2002. Hamad al-Khalifa faz parte do grupo social de fé muçulmana sunita, que governa a maioria da população do país, que é de crença muçulmana xiita. Em 1971, o Bahrein se tornou independente da Grã-Bretanha e conheceu um período de existência de uma Assembleia Nacional. Porém em 1975, a Assembleia foi dissolvida. Hoje, o país é governado pelo rei e por um primeiro-ministro. Além disso, possui duas câmaras – uma delas é formada por 40 membros indicados pelo monarca; a outra é formada por 40 representantes da população.  O poder recai principalmente sobre a primeira. A câmara dos representantes possui apenas poderes consultivos. Os revoltosos demandam a mudança do regime.
Os Estados Unidos mantêm uma posição ambígua em relação à revolta no Barhein. E quem olha o mapa da região (abaixo) vai prontamente entender o porquê.
O Bahrein é uma ilha localizada no Golfo Pérsico. Está muito próximo da Arábia Saudita, do Irã e do Kuwait. É uma área importantíssima em termos econômicos, devido ao grande fluxo de petróleo, e em termos militares, devido à proximidade do Irã, um país acusado de tentar construir armas nucleares.


Para os Estados Unidos, o aspecto militar é ainda mais importante. O Bahrein é a sede da 5ª Frota da Marinha norte-americana, localizada aí justamente por conta dos conflitos na região e por conta do trânsito de navios petroleiros.
Para o governo norte-americano, a queda do governo de Hamad al-Khalifa pode significar a entrada em cena de um governo anti-americano. Por isso, o governo de Barack Obama está em uma posição bastante delicada. O governo do rei Hamad age com intensa violência contra os manifestantes. Assim, da mesma forma que Obama critica a violência na Síria, deve também condenar a repressão do rei do Bahrein. A Secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton tem repetidas vezes pedido “moderação” ao governo de al-Khalifa, muito diferente de seu discurso dirigido ao governante da Síria, Bashar al-Asad, a quem Clinton pediu que renunciasse ao poder.
Além disso, a Arábia Saudita, maior aliado dos Estados Unidos no mundo árabe, é aliada do governo do Bahrein – já que ambos são regimes conduzidos por muçulmanos sunitas. O governo saudita chegou a enviar tropas ao Bahrein para auxiliar a reprimir as revoltas, em nome do Conselho de Cooperação do Golfo (formado por Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Omã ).
Os manifestantes no Bahrein esperam obter maior visibilidade para suas demandas utilizando o GP de Fórmula 1, evento automobilístico transmitido para todo o mundo.
O primeiro Grande Prêmio do Bahrein de Fórmula 1 ocorreu em 2004 e foi o primeiro GP da categoria a ser realizado em um país do Oriente Médio. O Circuito Internacional do Barhein, localizado em Sakhir, a 30 Km da capital Manama, começou a ser construído em 2002 e custou aproximadamente € 150 milhões.

terça-feira, 10 de abril de 2012

O que é a "Crise do Euro"?



Nos últimos meses, temos assistido às tentativas desesperadas dos países da União Europeia em vencer o que vem sendo chamado de “Crise do Euro”. Vemos países como Grécia e Itália no meio de uma grave turbulência econômica, trabalhadores condenando políticas oficiais, enfrentamentos entre manifestantes e a polícia nas ruas e lemos cifras que chegam aos bilhões. Porém, como se trata de um fenômeno relacionado a questões financeiras e com alguns aspectos que necessitam de entendimento teórico de economia, ficamos, na maioria das vezes, impossibilitados de entender a crise apropriadamente. Abaixo, um texto que tenta, na medida do possível, apresentar o que é a Crise do Euro.

O fenômeno convencionalmente denominado “Crise do Euro” é a crise gerada pela dificuldade de alguns países da União Europeia em pagar as dívidas acumuladas durante os últimos anos. A crise começou na Grécia, mas ocorreu em seguida na Espanha, em Portugal, na Itália e na Irlanda. A dívida cresceu de tal forma que gerou a possibilidade de um “calote”. Investidores particulares e grandes bancos, de várias partes do mundo, têm fundos investidos nesses países em títulos do tesouro e pressionaram seus governos a exigir dos países devedores o pagamento das dívidas. Diante da gravidade da crise, abriu-se a possibilidade, inclusive, do Euro ser abandonado.
Esses cinco países tentaram de todas as formas manter suas dívidas públicas em níveis aceitáveis ao longo dos anos 2000. Porém, após a crise financeira global de 2008/2009, gregos, espanhóis, irlandeses, portugueses e italianos viram suas economias passarem por períodos de grandes dificuldades. Com o abalo da economia mundial, esses países tiveram parcos crescimentos de seu Produto Interno Bruto (PIB) e, em alguns casos, houve até queda do PIB. O resultado foi a impossibilidade de obter receita suficiente para pagar as dívidas. A possibilidade de calote na Grécia fez com que investidores parassem de comprar títulos de outros países, o que espalhou a crise para outras economias, em especial as mais frágeis. Tudo isso enfraqueceu o poder financeiro do Euro frente a outras moedas.
Especialistas se dividem quanto às causas da crise. Há três explicações principais sendo apresentadas no debate. A primeira explicação, e mais divulgada, diz que ao longo dos anos esses países não fizeram reformas estruturais, como a trabalhista e a fiscal, o que ocasionou distorções que não permitiram uma arrecadação adequada. Para os defensores dessa explicação, os governos deveriam ter feito reformas na previdência e no mercado de trabalho, por exemplo, para equilibrar as contas – isto é, para arrecadar o suficiente para honrar os compromissos financeiros assumidos quando puseram seus títulos à venda no mercado.
A segunda explicação aponta para o conjunto de distorções econômicas próprias de cada país. Para os defensores dessa tese, os governos devem rever suas políticas econômicas voltadas para satisfazer as necessidades dos mercados financeiros. Deveriam, portanto, não pagar as dívidas. Defensores dessa tese alegam que a maioria dos investidores são especuladores que lucram enormemente com o “jogo do mercado financeiro” e causam danos às economias nacionais. Além disso, dizem que em muitos países nos quais políticas econômicas austeras foram implementadas o resultado foi mais recessão, pois pessoas sem dinheiro não consomem, as empresas não lucram e demitem, tirando do mercado mais consumidores potenciais, criando um círculo vicioso que faz a economia declinar sem parar.
A terceira explicação diz que os países mais fracos economicamente da União Europeia não tiveram meios de competir em um mercado comum europeu; e como tiveram de adotar o Euro como moeda e abandonar suas moedas nacionais, não puderam realizar políticas monetárias e cambiais para se tornarem mais competitivas; e o resultado foi a queda do PIB e a impossibilidade de pagar as dívidas. Alguns especialistas que defendem essa tese advogam a saída desses países da zona do Euro.
Diante do grave quadro, os países mais fortes da União Europeia buscaram meios para solucionar a crise. Grécia, Portugal e Irlanda receberam bilionários empréstimos para equilibrar suas contas, em um acordo com Alemanha, França e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Outros países também são alvo de ajuda financeira. Como contrapartida, os governos desses países deveriam fazer reformas trabalhistas e fiscais.
A crise econômica transbordou para crises políticas. Na Grécia e na Espanha, milhares de pessoas se manifestaram contra as políticas de austeridade propostas. O primeiro-ministro grego, George Papandreou, ameaçou colocar o acordo sob referendo popular, o que gerou indignação entre alemães e franceses, que davam o acordo como garantido. Dentro do próprio país houve reações contrárias à consulta pública sobre o pacote de ajuda financeira. Todo o mal-estar advindo da crise fez com que Papandreou renunciasse e Lucas Papademus assumisse seu lugar. Houve, inclusive, rumores sobre a saída da Grécia da União Europeia.
Outros países passam por problemas políticos semelhantes. Na Itália, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi também não resistiu e renunciou. Assumiu em seu lugar um “técnico”, Mario Monti, que luta para pôr fim à crise na Itália. Na Espanha e na Grécia, as grandes manifestações convocadas pelos autodenominados “Indignados” pressionam seus governos a pôr um fim na crise nas economias familiares. Na Espanha, a taxa de desemprego ultrapassa os 20%.


Policiais e manifestantes se enfrentam nas ruas de Atenas, Grécia

Apesar de inúmeras tentativas, o Euro continua em crise e ainda paira uma ameaça de abandono da moeda comum. As populações estão nas ruas demonstrando insatisfação e os governos mandam a polícia restaurar a ordem. Confrontos de rua ocorrem com frequência.
O mundo espera ansioso pela rápida solução da pior crise econômica e social da Europa desde os anos 1930.

terça-feira, 3 de abril de 2012

O que é a Questão Palestina? 1ª Parte


            Quase diariamente, recebemos informações sobre o conflito entre Israel e os palestinos. Termos como OLP, Faixa de Gaza, assentamentos judaicos, terrorismo palestino, Cisjordânia, Jerusalém Oriental, fronteiras de 1967, Hamas, Fatah etc. nos chegam com muita frequência, mas sem maiores explicações. Além disso, quando muitas pessoas tentam entender o que acontece, ficam sem condições de avaliar os fatos, pois os acontecimentos chegam fragmentados e parciais. Quando menciono que estudo o conflito Israel-Palestina, quase sempre a primeira pergunta que me fazem é: “mas o que é mesmo que acontece lá?” Assim, apresentarei aqui uma sequência de postagens tentando explicar da melhor forma possível o que é a Questão Palestina.
            A primeira postagem trata do período entre o final do século XIX e 1948.

Território do Mandato da Palestina (1944)

        Em geral, quando há referências hoje ao conflito entre Israel e Palestina, o nome apresentado é “Questão Palestina”. No entanto, antes de receber esse nome, durante boa parte do século XX, as expressões internacionalmente usadas (Palestine Question, Palestine Issue, Palestine Problem) são melhor traduzidos como “Questão da Palestina” e não como “Questão Palestina” (Palestinian Question). Na presente postagem, como veremos, a diferença na tradução assume também uma diferença de significados.
O que era denominando “Questão da Palestina” era o impasse ocasionado pelo conflito entre judeus sionistas e árabes palestinos sobre a posse e o uso da Palestina para objetivos nacionais. Ambos os lados reivindicavam para si a Palestina como o solo sobre o qual seria construído seu “Estado nacional”. Em primeiro lugar, portanto, deve se ter em mente que este é um conflito fundamentalmente político. Embora ambos os lados façam frequentes alusões a fundamentos religiosos, o conflito se caracteriza como uma luta entre dois grupos que disputam o poder em um mesmo território.
            Além disso, ao analisarmos o início do conflito, veremos que a Questão da Palestina foi produto de um problema europeu.  Foi o recrudescimento do antissemitismo na Europa no final do século XIX que criou o fluxo de judeus para a Palestina. E foi a perseguição nazista nos anos 1930 e durante a Segunda Guerra que ocasionou a maior taxa deste fluxo. Ou seja, a Questão da Palestina nasceu fora da Palestina, e foi fruto de uma conjuntura política completamente alheia à dinâmica política do Oriente Médio.
A perseguição a judeus na Europa possuía uma longa história. Durante a Idade Média, eles foram obrigados a se converterem ao cristianismo em vários lugares e foram perseguidos por serem os “assassinos de Cristo”, cujas práticas “judaizantes” eram punidas, às vezes, com a morte. Foram reunidos em guetos, proibidos de circularem junto à população não-judaica e relegados a umas poucas atividades profissionais, principalmente o comércio, visto como sujo pelos cristãos.
Porém, com o advento da Revolução Francesa, muitos princípios religiosos foram abolidos e o que passou a predominar era a igualdade perante a lei. Dessa forma, os judeus conseguiram se integrar às sociedades que não se pautavam mais em critérios religiosos. Os guetos foram abertos, os judeus se emanciparam, e então começaram a participar das sociedades em que viviam como cidadãos de um determinado Estado e não sob o título de “judeus”. Assim, ainda que com alguns retrocessos, os judeus puderam melhorar seu nível de vida consideravelmente desde o início até fins do século XIX. Neste período, abriu-se para os judeus a alternativa da “assimilação”, isto é a participação no que era visto como a “Europa civilizada”. O antissemitismo não desapareceu, mas ficou submerso em outras questões.
            No entanto, no final do século XIX, surgiu um antissemitismo de caráter diferente do que ocorria até então. Por volta de 1880 o antissemitismo deixou de ser religioso e cultural para tomar contornos “raciais”. Foi reelaborado e inserido em um contexto de acirramento dos sentimentos nacionalistas europeus, muitos dos quais buscando fundamentação em teorias raciais. Em uma época em que o ideário nacionalista emergiu com toda a força na Europa, os judeus foram vistos como “sem-pátria”, errantes, que mantinham solidariedade apenas ao seu grupo, como judeus, e não ao Estado, como cidadãos. Assim, os nacionalistas entendiam que os judeus minavam as bases nacionais dos países onde viviam. Os judeus foram, então, acusados de todas as mazelas destas sociedades.
Assim, nas duas últimas décadas do século XIX, a situação dos judeus no interior das sociedades europeias, tornou-se altamente precária. Os efeitos práticos desta nova forma de pensar começaram em 1881. A partir desse ano, houve uma série de pogroms[1] em todo o Leste Europeu, o principal deles o de Odessa, na Rússia, em 1881. Também na Alemanha, os judeus passaram a sofrer preconceitos e perseguições. Mesmo na França, onde a comunidade judaica era inferior à da Rússia e da Alemanha, a situação dos judeus piorou sensivelmente, culminando no grave episódio conhecido como “Caso Dreyfuss”.
Em 1894, o capitão judeu francês Alfred Dreyfuss foi acusado injustamente de traição. Ao terem em mãos uma mensagem de um militar francês que fornecia detalhes militares aos alemães durante a Guerra Franco-Prussiana em 1871, os investigadores rapidamente concluíram que havia sido Dreyfus, “o judeu”. Mesmo quando em 1897 veio a público o fato de que outra pessoa poderia ser culpada, e mesmo sem provas contundentes contra Dreyfus, ele foi considerado culpado, pois oficiais de alto escalão do exército francês forjaram provas contra ele. A situação piorou cada vez mais. A França se dividiu entre pró-Dreyfus e anti-Dreyfus, e ataques contra judeus se sucederam, clima que fez com que Emile Zola publicasse seu artigo J’acuse! (eu acuso!), onde chama o processo contra Dreyfus de “crime contra a humanidade”.
Como reação a essa onda de antissemitismo, emergiu um movimento político, a princípio minoritário entre os judeus europeus, mas que se tornaria uma força poderosa agindo em diversos pontos do mundo: o sionismo, cujo objetivo era criar um lar para os judeus na Palestina. Já havia desde a Idade Média movimentos migratórios da Europa para a Palestina, realizado por judeus religiosos. Porém, como movimento político dotado de objetivos bem definidos, o sionismo nasceu no final do século XIX como reação ao recrudescimento do antissemitismo na Europa. Theodor Herzl, um jornalista judeu húngaro que cobriu o Caso Dreyfus, entendeu que a assimilação não era mais uma alternativa e passou a advogar um Estado para os judeus. Herzl, considerado o pai do sionismo político, delineou como esse objetivo seria alcançado em seu livro Judenstaat, o Estado dos judeus, publicado pela primeira vez em 1896.
Ainda que as ideias de Herzl fossem, a princípio, combatidas pelos próprios judeus, os sionistas passaram a trabalhar para a construção de um Estado próprio. Em 1897, no Primeiro Congresso Sionista, ocorrido na cidade suíça da Basiléia, os sionistas chegaram a um acordo sobre o programa oficial do movimento. A resolução aprovada dizia: “o objetivo do sionismo é criar para o povo judeu um lar na Palestina, garantido por uma Constituição”.
Paralelamente a essas articulações políticas, gradativamente sionistas compravam terras na Palestina, adquiridas de proprietários árabes residentes nas cidades e construíam colônias. A Palestina, nesse período, era controlada pelo Império Turco Otomano. O movimento sionista tentou comprar a Palestina do sultão, mas o líder otomano negou.
A primeira onda de migração ocorreu em 1882. Judeus fugindo do pogrom da Rússia construíram a primeira colônia sionista. Os números das migrações de judeus para a Palestina, chamadas de aliyá (“subida” – Jerusalém está localizada em um planalto e implica que a ida à Palestina tem valor de elevação espiritual), entre 1882 e 1948, são delineadas abaixo:

    Período                nº aprox.                   Origem                           motivação
1882-1903:            20/30 mil                    Rússia                       fuga dos pogroms
1904-1923:            35/40 mil             Europa Oriental             pioneiros socialistas
1932-1938:              217 mil           Alemanha, Áustria               fuga do nazismo
1939-1948:              153 mil           Alemanha, Polônia                   Holocausto

Quanto mais aumentava o número de judeus sionistas na Palestina, mas a contrariedade dos árabes aumentava. Portanto, antes de tudo, deve ser ressaltado que a hostilidade da população árabe palestina ocorre contra um movimento político e não com uma etnia ou um grupo religioso. O conflito que se inicia decorre de uma oposição da população árabe (muçulmana e cristã) que habitava a região contra o movimento sionista, não contra os judeus, considerados sob os aspectos étnico e religioso. Até 1882, a população de judeus na Palestina era minoritária, mas sempre presente[2]. A convivência entre árabes e judeus não possuía eventos de hostilidade significativa. Portanto, não podemos concordar com a afirmação frequente de que o conflito entre árabes e judeus é milenar. É claro, não podemos afirmar que a relação entre judeus e muçulmanos era totalmente amistosa, mas não era de confronto permanente. Entre a população de Jerusalém do século XIX, por exemplo, as relações entre os habitantes eram muito mais complexas do que normalmente se afirma: as relações eram tensas entre judeus ashkenazim e sefardim; amistosas entre judeus e muçulmanos do bairro marroquino; hostis entre cristãos das várias denominações; e péssimas entre cristãos e judeus.
Porém, no início do século XX, essa convivência mudaria radicalmente. Os judeus até então habitavam a Palestina enquadrados no estilo de vida local e no interior das instituições reconhecidas como legítimas: as otomanas e as locais. Mesmo a primeira leva de imigrantes de 1882 não despertou uma animosidade mais séria entre os árabes da Palestina. No entanto, a partir do Congresso de Basileia, em 1897, e posteriormente, no início da segunda onda de migrações, em 1904, quando os “pioneiros socialistas” se propunham a criar uma sociedade diferente, com organização social e ideologia europeias, a questão se alterou radicalmente e os árabes rapidamente identificaram o sionismo com o colonialismo europeu.
Esta identificação não nos é hoje incompreensível. Os sionistas chegavam à Palestina pretendendo criar uma outra sociedade. Como indicador desta proposta, o movimento sionista procurou construir o seu idioma nacional, o hebraico, que até então era utilizado quase exclusivamente em meios religiosos. Na verdade, uma parte importante dos sionistas fazia questão de ressaltar a diferença: eles se viam como um grupo de pessoas civilizadas, portadoras do progresso, ao contrário dos árabes, orientais, bárbaros, primitivos e retrógrados. Theodor Herzl já enfatizava o Estado judeu como “baluarte da Europa contra a Ásia e a vanguarda da civilização em oposição à barbárie”. Posteriormente, Vladimir Jabotinsky chegou a afirmar: “nós, judeus não temos nada em comum com aquilo que significa ‘Oriente’ e agradecemos a Deus por isso”. Por fim, com as imigrações sionistas, emergia uma sociedade paralela à pré-existente.
Assim, o conflito entre a população árabe residente na Palestina contra os judeus sionistas se iniciou no início do século XX e gradativamente se deteriorou. A violência, então, começou a dar o tom das relações entre as duas comunidades. Em 1909 teve lugar o primeiro episódio violento entre as duas comunidades: um motim árabe palestino que promoveu ataques a judeus e a consequente formação da primeira força de defesa judaica, Hashomer – a Sentinela.
A Primeira Grande Guerra teve importantes desdobramentos para a Questão da Palestina. Em 1917, no que ficou conhecido como Declaração Balfour, Lorde Artur Balfour enviou uma carta à Organização Sionista Mundial afirmando que a Grã-Bretanha apoiaria o estabelecimento de um “lar nacional” judeu na Palestina. Mais uma vez a identificação sionismo-colonialismo foi levantada. Pois com o apoio explícito da Grã-Bretanha e como os imigrantes judeus eram de origem europeia, e imbuídos do pensamento progressivista e cientificista, alguns líderes árabes identificavam o estabelecimento judaico na Palestina como um movimento aos moldes do imperialismo europeu.  Porém, para eles, o colonialismo judeu era ainda pior. O representante palestino afirmava no Congresso Sírio em 1919 que o colonialismo sionista era pior do que o francês no Líbano, pois enquanto os franceses sabiam que eram estrangeiros, os sionistas acreditavam estar em casa na Palestina.
Ao fim da Primeira Guerra, com a derrota e o desmantelamento do Império Turco Otomano, a Palestina foi colocada sob controle da Grã-Bretanha pela Liga das Nações, sob o Sistema de Mandatos, passando a ser administrada oficialmente pelos britânicos em 1923. Também nos termos do Mandato, foi criada a Agência Executiva Judaica, órgão que seria o responsável por intermediar os contatos entre os judeus e os britânicos. Os árabes se recusaram a criar uma agência semelhante, pois isso significaria que eles apoiariam o controle britânico – eles demandavam a independência imediata da Palestina.
A partir da década de 1920, a violência passou a se generalizar. Apesar de tentativas de construir organizações de classe conjuntas entre judeus e árabes, a violência se tornou a forma mais frequente de relação entre os dois lados, por conta de seus objetivos conflitantes: construir um Estado próprio na Palestina.
Em 1921-2, ocorreu uma revolta árabe contra o Mandato Britânico, reivindicando um governo palestino independente. Em 1929, teve lugar uma outra revolta, dessa vez generalizada, antibritânica e antijudaica. Diante da escalada da violência, os judeus criaram na década de 1930 a Haganah (Forças de Defesa), uma milícia formada com o objetivo de proteger a população judaica, mas que também era utilizada para atacar árabes. Na mesma época, um grupo armado radical foi criado para ser ainda mais feroz em seus objetivos: o Irgun (Organização Militar Nacional), liderado pelo futuro Primeiro Ministro Menachen Begin. Contudo, um outro grupo ainda mais radical saiu das fileiras do Irgun, o Lehi (Lohame Herut Israel – Combatentes pela Libertação de Israel), que recebeu a alcunha de Gangue Stern pela administração britânica, por seus métodos terroristas e por ser inspirado nas idéias de um ativista judeu, Avhram Stern.
Em 1936, a Palestina foi abalada por uma revolta árabe de grandes proporções, que ficou conhecida como a Grande Revolta Árabe da Palestina, que durou até 1939. Diante da recusa da Grã-Bretanha em conceder um governo palestino independente, o Alto Comitê Árabe, liderado pelo mufti de Jerusalém Hajj Amin al-Husseini (um líder religioso), reuniu um grande contingente de guerrilheiros para atacarem britânicos e judeus. A revolta durou três sangrentos anos, sendo necessários 25 mil soldados britânicos, 12 aviões bombardeiros e a ajuda do Irgun e da Gang Stern para contê-la. O mufti, derrotado, fugiu para a Alemanha, onde recebeu a acolhida de Hitler.
Com o fim da revolta, emergiu a percepção internacional era que algo precisava ser feito para resolver o que agora era conhecido como “Questão da Palestina” ou “problema da Palestina” (Palestine Question; Palestine issue; Palestine problem). O governo britânico instalou a Real Comissão da Palestina, presidida por Earl Peel, conhecida como “Comissão Peel”. A conclusão da Comissão propôs pela primeira vez a partilha da Palestina, pois, segundo o relatório:

Um incontrolável conflito emergiu entre duas comunidades nacionais no interior das estreitas fronteiras de um pequeno país. Não há acordo entre elas. Suas aspirações nacionais são incompatíveis. Os árabes desejam reavivar as tradições da era de ouro árabe. Os judeus desejam demonstrar o que eles podem realizar quando retornarem à terra na qual a nação judaica nasceu. Nenhum dos dois ideais nacionais permite uma colaboração a serviço de um único Estado[3].

            Recusada pelos árabes e aceita com reservas pelos sionistas, a Grã-Bretanha decidiu não implementar o que a Comissão Peel recomendava. Diante da proximidade da Segunda Guerra, os britânicos desejaram atrair a amizade dos árabes, que já se aproximavam dos nazistas por conta de sua inimizade com a Grã-Bretanha e com a França, as duas potências colonialistas que controlavam o Oriente Médio desde o fim da Primeira Guerra. Assim, o governo britânico emitiu, em 1939, o documento que ficou conhecido como White Paper.
Traduzido convencionalmente como “Livro Branco”, o White Paper foi um documento emitido pelo governo mandatário em 1939 limitando a imigração de judeus para a Palestina a um número de 75 mil por ano. Além disso, proibia a compra de terras por judeus. Esse documento causou forte contrariedade nos meios sionistas, já que a imigração e a aquisição de terras eram ações imprescindíveis para a criação de um Estado judeu.
            Com a Segunda Grande Guerra em andamento e a perseguição nazista em curso, os sionistas e parte da comunidade internacional pediam com veemência a suspensão do White Paper e a permissão da imigração dos judeus que fugiam de Hitler. No entanto, a Grã-Bretanha se manteve atrelada à política de limitação da imigração. Isso deu início às migrações ilegais de judeus. Viajando em barcos precários e lotados, os judeus tentavam entrar na Palestina sem a permissão do governo mandatário. Muitos eram pegos e detidos em prisões britânicas, a principal delas localizada no Chipre. Dentro da Palestina, os judeus, liderados pelo Irgun e pela Gang Stern empreendiam ataques às autoridades e prédios britânicos em represália a esta política, no que eram ajudados, em algumas ocasiões, pela Haganah.
O pior ato terrorista foi a explosão do Hotel Rei David, em Jerusalém, realizado pelo Irgun, em 1946, como resposta à política britânica que limitava a imigração judaica e impedia a criação do Estado judeu. O ataque provocou a morte de cerca de 90 pessoas, entre britânicos, árabes e judeus.
            Com o fim da Segunda Guerra e com o holocausto tornado público, a demanda pela criação de um Estado judeu na Palestina, com a prerrogativa de decidir sobre sua própria política de imigração, tornou-se muito aguda. O governo britânico tentava conciliar seus próprios interesses com as demandas de árabes e judeus. Ao comprovar-se que estas tentativas eram em vão, e diante da cada vez mais ampla oposição interna por causa do número de soldados e civis mortos pelos ataques judeus, o governo britânico decidiu, em fevereiro de 1947, entregar a Questão da Palestina para ser resolvida pela recém-fundada Organização das Nações Unidas (ONU).
Entre 28 de abril e 15 de maio de 1947, ocorreu a primeira sessão especial da Assembleia Geral da ONU, tendo o objetivo de decidir sobre a instalação de um comitê para ouvir todos os interessados na Questão da Palestina. A sessão especial decidiu que deveria ser criado o Comitê Especial das Nações Unidas sobre a Palestina (UNSCOP – United Nations Special Committee on Palestine). Este comitê foi encarregado de ouvir pessoas e organizações na Palestina e em outras partes do mundo e elaborar conclusões sobre o que deveria ser feito para solucionar o problema. Os Estados componentes do comitê foram: Austrália, Canadá, Tchecoslováquia, Guatemala, Índia, Irã, Holanda, Peru, Suécia, Uruguai e Iugoslávia.
O UNSCOP sugeriu a partilha da Palestina em três partes: um Estado árabe, um Estado judeu e uma área internacional (Jerusalém). Iniciaram-se intensas discussões na ONU e enorme apelo internacional.

Mapa da Partilha da Palestina baseado na Resolução da ONU 181, aprovada em 29 de novembro de 1947

 Em 29 de novembro de 1947, a proposta foi votada na Assembleia Geral da ONU, presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha. A Resolução 181, propondo a partilha da Palestina, foi aprovada, obtendo 33 votos favoráveis, 13 contrários e 10 abstenções.
A aprovação da Resolução deu legitimidade à demanda do movimento sionista por um Estado judeu. Porém, a efetivação do seu objetivo ainda enfrentava a oposição dos árabes, que se recusaram a aceitar a partilha. Os árabes ofereciam como alternativa a “cantonização”, isto é, um Estado federado composto por um cantão judeu e outro árabe, ambos com grande autonomia, mas não como Estados separados.
Logo após a votação na ONU, violentos combates ocorreram na Palestina. Com o anúncio da retirada britânica prevista para ocorrer em 15 de maio de 1948, os judeus buscaram efetivar seu controle sobre as áreas destinadas a eles pela Resolução 181 e os árabes lutaram para manter suas posições. Os violentos combates provocaram uma onda de fugas da população árabe, dando origem ao problema dos refugiados palestinos.
No plano interno do movimento sionista, ainda havia o temor (e a quase certeza) de que, com a retirada britânica, exércitos árabes invadiriam a Palestina logo após a retirada da Grã-Bretanha. Intensos debates surgiram entre os sionistas. Em uma reunião ocorrida em 12 de maio de 1948, alguns líderes pensavam que a situação militar era muito complicada e cogitavam adiar a declaração do Estado judeu. David Ben-Gurion foi o mais ardoroso defensor da declaração de independência imediatamente após a retirada das forças britânicas. Após muitos debates, decidiu-se por essa linha. E após várias sugestões, o nome escolhido para o Estado foi “Israel”, declarado no primeiro minuto de 15 de maio de 1948, no horário local.
Uma guerra iniciou-se no dia seguinte, quando os exércitos de cinco Estados árabes invadiram o recém-proclamado Estado de Israel.
Em janeiro de 1949, ao fim da guerra, conhecida pelos israelenses como “guerra de independência de Israel”, o Estado de Israel emergiu soberano, ocupando a maior parte da Palestina. A parte árabe ficou dividida em duas partes: A Cisjordânia (controlada pela Jordânia) e a Faixa de Gaza (controlada pelo Egito).

Mapa de Israel/Palestina após os armistícios de 1949

Por causa da guerra, cerca de 800 mil palestinos deixaram suas casas e tornaram-se refugiados.  Para os palestinos, a desagregação da sociedade ocasionada pela guerra é conhecida como al-nakba (o desastre) e representou a não efetivação, até hoje, de seu Estado.
Portanto, a situação calamitosa de um povo foi resolvida à custa da criação de uma outra situação calamitosa; e a “Questão da Palestina” (conflito entre judeus sionistas e árabes palestinos) deu lugar à “Questão Palestina” (a não existência do Estado palestino e o problema dos refugiados).



[1] Pogrom: “(do russo, ‘destruir completamente’) – ataque destruidor e assassino contra os judeus de um gueto, tolerado ou incitado pelo poder oficial”.
[2] Segundo estimativas, este contingente era de aproximadamente 24 mil em 1882, 4% da população total, radicados, sobretudo, no interior e nos arredores da cidade de Jerusalém, além das cidades de Hebron, Safed e Tiberíades. O censo realizado pelo governo otomano em 1905, apesar de conter dados fragmentários e problemáticos, pode auxiliar: o número de judeus em Jerusalém era de 13.600, cerca de 12% de uma população total da cidade de 110 mil. Esse número provavelmente era maior, pois o censo contabilizava apenas os habitantes que possuíam cidadania otomana, o que não era o caso de muitos judeus.
[3] Sumário do Relatório da Comissão Real da Palestina (Comissão Peel), de 30 de novembro de 1937 (C.495.M.336.1937.VI). Disponível em: <http://unispal.un.org> Acesso em: 22 fev. 2010.