Diariamente, somos bombardeados por informações vindas de todos os lados. Recebemos notícias, indicadores, análises, e prognósticos que chegam dos cinco continentes. Apesar da enormidade de informações, quase sempre nos vemos incapazes de compreender o que ocorre. Este blog pretende ser uma contribuição para entender esse mundo complexo. É claro, não tem a pretensão de ser um oráculo, que dê conta de tudo o que ocorre no mundo, mas uma busca incessante de entender o que acontece à nossa volta.

domingo, 24 de novembro de 2013

Acordo entre potências mundiais e Irã

No dia 24 de novembro de 2013, um acordo inicial foi assinado entre  o Grupo 5+1 - os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, Rússia, França, Grã-Bretanha e China) mais a Alemanha - e a República Islâmica do Irã, em torno do programa nuclear iraniano. Há algumas semanas, iniciaram-se contatos diplomáticos para se chegar a um acordo. Embora as discussões fossem difíceis, era de interesse de ambos os lados que um acordo fosse alcançado (Ver Negociações entre Estados Unidos e Irã: há possibilidades de acordo ?). Mas, afinal, o que se obteve com esse acordo inicial?


O acordo definiu uma série de obrigações a serem cumpridas pelas autoridades iranianas, com o objetivo de evitar que o Irã obtenha capacidade de construir uma bomba nuclear. Porém, permite a existência de instalações nucleares e um grau limitado de enriquecimento de urânio. Por outro lado, as potências reunidas no Grupo 5+1 se comprometeram a revogar algumas sanções, o que será um alívio para a economia iraniana.
Abaixo seguem os principais termos do acordo.

Obrigações do Irã
- Paralisar o enriquecimento de urânio acima de 5%;
- Desmantelar conexões técnicas necessárias ao enriquecimento acima de 5%;
- Não instalar centrífugas adicionais de qualquer tipo;
- Não construir novas instalações para enriquecimento de urânio;
- Paralisar a operação do reator na usina da cidade de Arak;
- Permitir inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica.

Medidas do Grupo 5+1
- Não adotar novas sanções pelo período de 6 meses;
- Permitir o acesso a 4,2 bilhões de dólares em divisas iranianas que estavam congeladas em bancos estrangeiros;
- Suspender algumas sanções sobre as exportações de ouro e outros metais preciosos, produtos petroquímicos e automóveis, no valor aproximado de 1,5 bilhões de dólares;
- Permitir que europeus comprem petróleo iraniano em níveis limitados.

O acordo teve grande repercussão internacional. Os dois lados envolvidos elogiaram o acordo, como uma vitória diplomática. O presidente norte-americano Barack Obama fez um pronunciamento em que deu as congratulações aos negociadores e disse que o acordo faria o mundo "mais seguro", ao impedir que o Irã desenvolva armas nucleares.
Já o Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, foi duro, ao chamar o acordo de "erro histórico". Igualmente contrariados ficaram os demais aliados norte-americanos na região, como Arábia Saudita e alguns Estados do Golfo. Todos temem que o Irã continue seu programa nuclear e um dia obtenha a bomba. Além disso, também enxergam o acordo como uma vitória diplomática do Irã e um importante passo para seu fortalecimento diante dos outros atores da região.

Esse foi apenas o primeiro acordo entre as partes. Devemos acompanhar os próximos eventos para sabermos se haverá um alívio das tensões. Sobretudo, resta saber se uma relação amistosa entre Irã e Estados Unidos pode surgir e alterar o equilíbrio de poder no Oriente Médio.

Ver também:

domingo, 10 de novembro de 2013

Negociações entre Estados Unidos e Irã: há possibilidade de acordo?

Durante as últimas semanas, temos visto um intenso esforço diplomático para que se chegue a um acordo entre Irã, Estados Unidos, União Europeia, Rússia e Alemanha a respeito do Programa Nuclear Iraniano. Certamente, os dois atores mais envolvidos são os Estados Unidos e o Irã, países que são adversários há décadas, desde que a Revolução de 1979 derrubou o Xá Rheza Pahlevi, aliado de Washington.
Encontros tensos, vazamentos de informações, uma movimentação intensa de oficiais diplomáticos - tudo deixa transparecer que a negociação não será fácil.
Porém, há alguma possibilidade dessa negociação dar certo?


Como sempre acontece com negociações internacionais, é difícil saber ao certo o que está ocorrendo a portas fechadas e se o que é divulgado para a imprensa é real ou apenas um modo encontrado para passar mensagens a adversários e a alguns aliados. No entanto, pelo que ocorre nos Estados Unidos e no Irã, podemos tentar inferir algumas possibilidades de ações por parte dos envolvidos.
O Irã tem assumido uma postura bastante diferente desde que Hasan Rohani assumiu a presidência do país, sucedendo Mahmoud Ahmadinejad, que era persona non grata nos meios diplomáticos internacionais por sua postura belicosa e discursos inflamados (Ahmadinejad chegou, inclusive, a negar o Holocausto). Rohani assumiu a presidência do Irã em meio a uma grave crise econômica, advinda das sanções internacionais impostas por Estados Unidos, União Europeia e ONU.
Desde 2006, a ONU aprovou resoluções condenando o enriquecimento de Urânio em usinas nucleares iranianas. Porém, autoridades do país dizem que o programa nuclear é pacífico e o enriquecimento de Urânio se deve a necessidades energéticas. Como esse procedimento pode levar à construção de bombas nucleares, as potências europeias e Estados Unidos pressionam para que o Irã ponha fim ao programa ou o submeta a uma rigorosa inspeção por parte da Agência Internacional de Energia Atômica - AIEA. O Irã nega as acusações de que seu programa tem fins militares, afirmando que se mantém comprometido com o Tratado de Não-Proliferação de Armas Atômicas.
As sanções foram aprovadas e desde então o Irã vem passando por inúmeras dificuldades econômicas. A venda de petróleo, que perfaz cerca de 50% da receita do país, foi duramente afetada. O Irã possui cerca de 9% das reservas de petróleo do mundo.
As sanções da União Europeia são especialmente danosas ao Irã porque como o comércio e outros negócios com os Estados Unidos se mantêm restritos desde 1979, a União Europeia tem sido um dos principais parceiros econômicos do Irã.
Em 2012, a União Europeia baniu a compra de petróleo iraniano. Os europeus compravam 20% da produção iraniana. Entre 2011 e 2013, a exportação de petróleo iraniano caiu de 2,2 milhões de barris por dia para 700 mil. Logo, essa sanção acertou em cheio a economia do país.
Além disso, há as sanções financeiras, que impõem restrições à circulação de divisas entre o Irã e países estrangeiros. Em janeiro de 2012, a União Europeia congelou todos os ativos do Banco Central Iraniano em instituições financeiras dos 27 Estados membros. Já os Estados Unidos, impõem restrições a empresas que têm relações com o Irã, piorando ainda mais a situação do país.
Com isso, nos últimos anos, a economia iraniana vem decrescendo significativamente, muitos negócios pequenos e médios estão à beira da falência e o desemprego cresceu, especialmente entre os jovens.
Assim, é bastante provável que Rohani busque um acordo. Se a situação permanecer nesse ritmo, analistas avaliam que a economia do Irã pode entrar em colapso dentro de alguns meses.
Na verdade, Rohani foi eleito com um discurso político que afirmava que tiraria o Irã do isolamento diplomático criado por Ahmadinejad. Para os apoiadores de Rohani, o Irã deve adotar algumas medidas políticas demandadas pelos Estados Unidos e União Europeia. Porém, ele encontrará uma feroz resistência interna se resolver adotar um tom mais conciliatório com Washington.

Por outro lado, parece que o governo norte-americano anseia por uma solução diplomática rápida. Há uma pressão para que o Presidente Barack Obama não permita que o Irã tenha armas nucleares. A principal voz nesse sentido é do Primeiro Ministro de Israel Bejnamin Netanyahu, que disse estar disposto a atacar o Irã, sozinho se necessário (ou seja, mesmo sem o aval dos Estados Unidos).
Isso seria a pior coisa a acontecer para a estratégia de longo prazo dos Estados Unidos no Oriente Médio e no Golfo Pérsico. Os Estados Unidos tentam nesse momento estabilizar a região sem o recurso militar. Há uma pressão interna para que Obama não envolva os Estados Unidos em uma nova guerra no Golfo Pérsico, depois dos efeitos catastróficos da guerra do Iraque (Ver 10 anos da Guerra do Iraque, parte 1 e parte 2). Assim, se Israel atacar o Irã e a guerra adentrar um estágio perigoso (com o envolvimento de outros países), os Estados Unidos deverão agir. Para muitos nos Estados Unidos, esse seria um cenário catastrófico, que criaria condições econômicas devastadoras para a região, o que, por sua vez, prejudicaria a já combalida economia norte-americana.

Por conta disso, talvez Estados Unidos e Irã cheguem a um acordo. Embora as negociações sejam difíceis, há possibilidade de que uma solução de compromisso seja alcançada. Já foram propostas nos últimos dias algumas saídas, como o fornecimento de Urânio por países estrangeiros, em troca da não utilização de certos equipamentos para enriquecimento no próprio Irã. Possivelmente, negociações sobre as intenções militares dos norte-americanos na região devem estar ocorrendo, pois o Irã não desejaria abdicar de um possível programa nuclear militar sem garantias de que o país não seria atacado pelos Estados Unidos.
Por fim, não é certo que o acordo seja alcançado, mas os dois lados anseiam isso. A dificuldade reside nos limites que cada um tem por trás de si para aceitar certas condições. Tanto Irã quanto Estados Unidos não querem que a questão degenere em confronto militar, mas também não podem aceitar qualquer condição.

Ver também:

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O que está acontecendo na Líbia?

Atualizado em 16 de novembro de 2013 (19:30)

Nesta semana, acompanhamos eventos na Líbia que demonstram o quão conturbado está o ambiente no país. Imagens de pessoas mortas e feridas correram o mundo, após uma manifestação de rua na capital Trípoli ter degenerado em violência e deixado um saldo de cerca de 40 mortos.
A marcha pelas ruas da capital era um protesto contra a presença de milícias em Trípoli. O Primeiro-Ministro, Ali Zeidan, ordenou a retirada de todos os grupos armados da capital. Porém, as milícias não obedeceram. Durante a marcha, no último dia 15 de novembro, grupos armados atiraram contra os manifestantes. A violência se espalhou no dia seguinte, quando tropas rivais se confrontaram nas ruas de Trípoli.
Mas afinal, o que está acontecendo na Líbia?



A Líbia passa por um momento de profunda instabilidade após a derrubada do ditador Muammar al-Qadafi em 2011. Qadafi governava a Líbia desde 1969, após um golpe militar que derrubou o rei Idris As-Sanusi.
A Líbia é um país que reúne diferentes regiões e que se configurou territorialmente no período de domínio otomano. A história da região é antiquíssima. Ao longo dos séculos foi dominada por fenícios, gregos, romanos, vândalos, bizantinos, até ser ocupada pelos árabes que se expandiam pelo Norte da África no ano de 643 D.C.
O Império Otomano ocupou a região no século XVI e criou a província da Líbia, através da reunião das províncias de Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan. A região permaneceu sob domínio otomano por vários séculos, mas em diferentes períodos possuiu grande autonomia.
Em 1911-1912 a Líbia foi ocupada pela Itália. Houve anos de insurgência, mas os grupos rebeldes foram sufocados. No entanto, em 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial, as tropas aliadas expulsaram os italianos. A Líbia foi ocupada, então, pelos Aliados - a França passou a administrar Fezzan, enquanto os britânicos passaram a administrar Tripolitânia e Cirenaica.
A Líbia obteve sua independência em 1951, sob o rei Idris. Porém, a influência da Europa e dos Estados Unidos permaneceu de forma proeminente. A Líbia é um país que possui uma grande quantidade de petróleo, o que atiçou (e ainda atiça) a cobiça das grandes potências. Tal situação gerava descontentamento interno, principalmente entre os militares.
Assim, em 1969, um golpe militar depôs o rei. O coronel Muammar al-Qadafi, com apenas 27 anos, assumiu o poder. Seguiu-se um regime militar ditatorial, em que Qadafi procurava uma agenda pan-árabe, aliou-se à União Soviética e era completamente anti-americano. Qadafi fechou todas as empresas americanas, italianas e inglesas, além de nacionalizar as companhias de petróleo. Na década de 1980, caças americanos bombardearam instalações militares e o palácio do ditador.
O governo líbio sob Qadafi foi acusado de ser o responsável pela derrubada de um avião da empresa Pan Am com 258 passageiros sobre a cidade escocesa de Lokerbie, em 1988. A animosidade entre as partes era aguda. No entanto, nos anos 2000, Qadafi começou a se aproximar dos governos dos Estados Unidos e da Itália.

Muammar Qadafi em 1969

Após anos de governo Qadafi, a população se revoltou. A revolta na Líbia começou em fevereiro de 2011, quando a população se manifestou em massa, inspirada pelas revoltas em outras partes do Oriente Médio e do Norte da África, conhecidas na mídia como "Primavera Árabe". Os protestos começaram em Benghazi e logo se espalharam para outras partes do país. Seguiu-se um período em que o governo utilizou de todos os meios militares à sua disposição para sufocar os manifestantes. Diante disso, emergiram grupos rebeldes que tinham como objetivo derrubar Qadafi. Os ataques do governo se tornaram cada vez mais severos.
Diante da grave situação humanitária, o Conselho de Segurança da ONU autorizou a criação de uma zona de restrição aérea para evitar que Qadafi utilizasse sua aviação militar para atacar a população. Como Qadafi não respeitou essa restrição, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) bombardeou várias partes do país, o que facilitou a contra-ofensiva dos rebeldes, que estavam baseados principalmente em Benghazi.
Em agosto de 2011, os rebeldes avançaram sobre a capital, Trípoli, e atacaram o centro do governo. Qadafi e sua família haviam fugido. Porém, em outubro, os rebeldes encontraram Qadafi, o capturaram e o assassinaram.

A partir de então, tentou-se formar um novo governo na Líbia. Constituiu-se um governo provisório, em novembro de 2011, liderado pelo Conselho Nacional de Transição (CNT), que havia sido reconhecido em julho pelas potências europeias e Estados Unidos. Porém, os sinais de descontentamento apareceram já em janeiro de 2012, quando grupos rebeldes em Benghazi entraram em confronto com as forças do CNT.
Proliferaram-se milícias por todo o país. Diferentes grupos controlam nacos do território, que se tornou, na verdade, um aglomerado de áreas controladas por diferentes agrupamentos clânicos. Há confrontos permanentes - entre diferentes milícias, entre o governo e milicianos, entre grupos árabes e berberes etc. Extremistas islâmicos também encontraram no país um território ideal para atuar. Em 11 de setembro de 2011, um grupo ligado à Al-Qaeda atacou a embaixada norte-americana em Benghazi e matou 3 pessoas, inclusive o embaixador, Chris Stevens.
Além disso, as armas utilizadas pelos rebeldes se disseminaram entre a população e é extremamente difícil para o governo recolher esse arsenal para que somente o exército seja uma força armada. Tais armas se espalharam para outras partes do Norte da África e estão sendo utilizadas por grupos rebeldes e grupos extremistas no Mali, na Argélia, no Quênia etc.
O governo tem tentado, em vão, desmantelar as milícias e integrar algumas delas no exército do país. Em agosto de 2012, o CNT passou o governo para o Congresso Geral Líbio (CGL), que assumiu a luta para conter os grupos rebeldes e dar ordem ao país. Ali Zeiden - ex-presidente do CGL - foi eleito Primeiro-Ministro em outubro.
Zeiden é um ex-diplomata que deixou o governo de Qadafi em 1980 e desde estão fazia oposição ao governo. Durante a revolta contra Qadafi, ele foi o principal elo entre o CNT e as potências europeias. Zeiden é reconhecido como o principal responsável por obter o reconhecimento externo dos grupos rebeldes. Porém, hoje, sofre oposição de diversas frentes - grupos islamistas, milícias tribais e líderes autonomistas regionais. Ele é contestado pelos grupos rebeldes, principalmente baseados em Benghazi.
Em 10 de outubro de 2013, o próprio Zeidan foi sequestrado por um grupo rebelde e mantido cativo por seis horas. Os rebeldes afirmaram que o ato fora uma represália à captura de um líder rebelde por forças americanas. Além disso, alegaram que o Primeiro Ministro era corrupto e que subornava militares para garantir seus próprios interesses. O sequestro de Zeidan foi a expressão máxima de um governo sem poder de controlar os grupos armados do país.


A Líbia se encontra em uma posição de extrema vulnerabilidade e o governo tem se mostrado incapaz de manter a ordem em grande parte do país. É nesse quadro que se encontra a Líbia no momento e não há sinais visíveis de que a situação irá melhorar no curto prazo.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O que está acontecendo no Quênia?

Há alguns dias, vimos imagens chocantes vindas de um hotel de luxo em Nairóbi, capital do Quênia. Os números até o momento indicam que há 72 mortos e centenas de feridos. O governo anunciou que o número de vítimas pode subir, pois ainda há buscas no interior do hotel. O grupo que reivindicou o ato terrorista é a organização Ash-Shabab.
Mas o que exatamente está acontecendo no Quênia? Quem é o Ash-Shabab?


O ato terrorista no hotel Westgate, em Nairóbi, Quênia, está relacionado a vários aspectos da realidade política da região: o crescimento de grupos extremistas no norte e no centro da África, a situação precária dos Estados e as relações políticas entre os países do Chifre da África. O ato terrorista foi cometido pelo grupo Ash-Shabab alegando ser uma represália à intervenção do Quênia na Somália.

O Ash-Shabab (A Juventude) é um grupo extremista somali ligado à Al-Qaeda. Os líderes do Ash-Shabab iniciaram suas atividades em meio a grupos extremistas em atuação na Somália na década de 1990, dentre eles o Al-Ittihad Al-Islamyy (União Islâmica - UI). A UI se dividiu em 2003, entre um bloco que queria fazer a transição para a arena política e aqueles que queriam se manter na luta armada. Estes últimos criaram a União das Cortes Islâmicas - UCI. O Ash-Shabab surgiu em 2006 como ala "jovem" do UCI e como braço armado.

A Somália passa por uma guerra civil desde os anos 1980. Em 1991, o presidente, General Mohammed Siad Barre foi deposto por grupos rebeldes. Desde então, a violência se disseminou pelo país, que é considerado por muitos analistas e membros da comunidade internacional como um "Estado falido", isto é, não possui soberania dentro de suas fronteiras.
O território da Somália a partir desse período passou a ficar fragmentado entre diferentes grupos e desde então se multiplicaram os grupos extremistas islâmicos.
Atualmente, o norte do país tem estado relativamente calmo, sob o poder da auto-proclamada "República da Somalilândia". Porém, outras partes do país permanecem em estado de violência e ausência de leis. Alguns nacos de território estão em poder de grupos criminosos, que praticam sequestros de estrangeiros e atos de pirataria. Foi nesse ambiente de falta de instituições estatais que o Ash-Shabab obteve a liberdade necessária para suas atividades. O grupo praticava atos de terrorismo  não só na Somália, mas também na Etiópia, em Uganda e no Quênia.
O Ash-Shabab chegou a controlar partes do território do sul da Somália, incluindo a capital, Mogadíscio. Os líderes do grupo aplicavam uma versão extrema da Shari'a (conjunto de preceitos legais islâmicos) nos territórios sob seu controle. O grupo segue a versão wahabbista* do Islã, enquanto a maioria dos habitantes da Somália é sufista**. Em 2011, o grupo foi expulso da capital. Porém, o Ash-Shabab ainda possui domínio de territórios em algumas áreas rurais.
Não só a situação na Somália tem influência sobre a possibilidade de atuação do Ash-Shabab. O grupo também está inserido em um contexto de crescimento da atuação de grupos extremistas islâmicos no norte da África e na região do Sahara. Eventos recentes na Argélia, Mali e Nigéria demonstram esse fato.
Além disso, o Ash-Shabab conta com o apoio da Eritréia, embora o governo desse país negue que forneça armas para o grupo.
Foi nesse contexto que forças militares do Quênia intervieram no sul da Somália em 2011, como parte de um esforço conjunto de países da região. O objetivo era expulsar o Ash-Shabab de localidades estratégicas, especialmente no litoral, de onde eram lançadas operações de pirataria no Oceano Índico. Atualmente, há cerca de 4 mil soldados quenianos na Somália.
O Ash-Shabab realizou ataques contra o governo do Quênia desde então. Porém, a invasão do shopping foi o maior de todos os atos do grupo contra o Quênia.

* Wahabismo - ideário muçulmano sunita criado a partir da atividade de Mohammed Ibn Abdel Wahab (1703-1792) que pregava a volta às raízes do Islã contra o que ele considerava as "inovações" ilegítimas na vida dos povos muçulmanos, que representavam, no período, costumes e ideias europeias.

** Sufismo - tendência religiosa muçulmana que prega a união dos fieis com Allah para chegar à verdade divina. É considerado como o "misticismo islâmico". O sufismo não é uma seita no Islã, mas uma dimensão de crenças e práticas encontradas tanto no Islã sunita quanto no Islã xiita.

Ver Também:
O que está acontecendo na Argélia?
O que está acontecendo no Mali?

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Possibilidades e desafios das negociações entre israelenses e palestinos

No final do mês de julho de 2013, israelenses e palestinos concordaram em voltar à mesa de negociações. Houve muito ânimo por parte da comunidade internacional. Espera-se que, finalmente, as conversações deem um fim ao conflito. Porém, como apresentado na postagem anterior (Ver As negociações entre israelenses e palestinos), alguns pontos são centrais nas negociações e geram inúmeras controvérsias que deverão ser efetivamente tratadas. Afinal, quais são as possibilidades e os desafios das negociações entre israelenses e palestinos?


Analisando o cenário atual da política israelense e palestina, qualquer previsão parece precipitada. Porém, uma coisa é certa: há inúmeras questões que tornam um acordo bastante difícil. Provavelmente, os dois lados presentes na mesa de negociação estão, de fato, interessados em chegar a um acordo. A negociadora israelense, a Ministra da Justiça Tzipi Livni, vem demonstrando nos últimos anos que sua principal bandeira política no terreno diplomático é que Israel deve chegar, o mais rápido possível, a um entendimento com os palestinos. Livni faz parte de um bloco político israelense que entende que a situação de ocupação dos Territórios Palestinos é insustentável e é prejudicial aos interesses de Israel. Segundo essa corrente, a ocupação militar e os repetidos episódios de sofrimento infligido a civis palestinos tiram a legitimidade de Israel perante a comunidade internacional. Além disso, políticos dessa corrente advertem contra o isolamento diplomático de Israel. Recorrentes medidas internacionais de retaliação à política israelense quanto à colonização na Cisjordânia causam prejuízo para o país - como quando a União Europeia adotou sanções contra produtos produzidos em assentamentos.
No lado palestino, a negociação é liderada por Saeb Erekat, que está há anos envolvido com o processo de diálogo com Israel. Erekat é um político e acadêmico: cursou Mestrado em Estudos sobre a Paz na Universidade do Estado de São Francisco (Estados Unidos) e Doutorado em Estudos sobre Paz e Conflitos na Universidade de Bradford (Inglaterra). Na Cisjordânia, foi professor de Ciência Política na Universidade An-Najah. Erekat participou das negociações que resultaram nos Acordos de Oslo e foi negociador-chefe palestino entre 1995 e 2003. Erekat faz parte de um bloco político palestino que defende a solução de dois Estados e que reconhece o Estado de Israel. Ele está entre os mais importantes nomes do Partido Fatah - agremiação do Presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, e principal legenda da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
No entanto, apesar da disposição de Livni e Erekat a negociar, eles sabem que o processo é lento e difícil. Tanto que mantêm a maioria dos pontos em segredo e fizeram uma previsão de 9 meses para um acordo. No dia 14 de agosto de 2013, houve uma primeira rodada de conversações, mas nenhum detalhe foi divulgado.

Embora a simples aceitação de ambos os lados em voltar a conversar tenha gerado um grande ânimo na comunidade internacional, há vários desafios que os negociadores devem vencer para chegar a algum acordo.
O principal desafio é derrotar a oposição interna. Os adversários da negociação nos dois lados são extremamente atuantes e usam sua força para marcar posição e, não raro, minar as chances de acordo. 
Do lado israelense, os principais adversários são os políticos pró-assentamento e/ou contrários à retirada total da Cisjordânia. O complicador para o governo do Primeiro Ministro Benjamin Netanyahu é que políticos dessa corrente estão no próprio governo. O principal representante dessa tendência é o partido político Casa Judaica (Bayit Yehudi), cujo principal líder, Naftali Bennett, é nada menos que o Ministro da Economia. Bennett se mostrou, desde o início, contrário à negociação com os palestinos. Em entrevistas recentes, ele disse que é totalmente oposto à criação de um Estado palestino e defende a anexação completa da Cisjordânia (território que os favoráveis aos assentamentos chamam de "Judeia e Samária"). Dessa forma, o governo Netanyahu está em uma posição ambígua. Seu gabinete está dividido. De um lado, a Ministra da Justiça é a favor das negociações; de outro, o Ministro da Economia é contrário.
Os políticos do partido Casa Judaica já ameaçaram se retirar do governo se Netanyahu for adiante nas negociações. Isso poderá gerar uma crise política, pois a maioria liderada por Netanyahu será desmantelada. Por outro lado, líderes do Partido Trabalhista, agremiação que hoje está na oposição, afirmaram que se a Casa Judaica abandonar o governo, o Partido Trabalhista tomará o seu lugar.
Do lado palestino, a situação também não é fácil. O principal opositor das negociações é o Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas. Os políticos do Hamas alegam que Mahmoud Abbas não tem legitimidade para negociar em nome de todos os palestinos. Vale dizer que o Hamas e o Fatah (partido de Abbas) são adversários políticos de longa data, situação que degenerou em inimizade aberta desde que o Hamas tomou o controle da Faixa de Gaza, em 2007. As tentativas de reconciliação entre os grupos não vêm tendo sucesso nos últimos anos. As negociações com Israel, com certeza, estão entre os entraves ao acordo entre ambos. Teoricamente, o Hamas não reconhece Israel e não aceita a solução de dois Estados, embora em algumas ocasiões, líderes políticos do grupo acenem com essa possibilidade. Contudo, além do Hamas, há outros grupos menores atuando na Faixa de Gaza que também são contra as conversações.
A situação no terreno também é muito ruim. Logo depois do anúncio do reinício do diálogo, 4 foguetes foram lançados da Faixa de Gaza contra Israel, muito provavelmente pela Jihad Islâmica da Palestina. Do lado israelense, em 20 de julho, colonos atacaram palestinos em Hebron. O clima político ficou mais tenso em toda a Palestina. No dia 14 de agosto, data prevista para a primeira rodada de negociações em Jerusalém, Israel bombardeou a Faixa de Gaza, em resposta ao disparo de um foguete.

Saeb Erekat, Secretário de Estado norte-americano John Kerry e Tzip Livni.

Diante disso, a chave para o sucesso das negociações será a vitória contra os opositores da negociação entre israelenses e palestinos.
Para amenizar um pouco a oposição interna, ambos os lados já manifestaram que qualquer proposta de acordo irá passar por um referendo. Com isso, sabem que, se o acordo for aprovado, terão ao seu lado a legitimidade de um processo democrático. Resta saber, portanto, como ambas as populações irão se posicionar se houver um acordo na mesa de negociações.
Isso está relacionado à visão das populações de ambos os lados sobre a solução de dois Estados. Segundo pesquisa Gallup, 52% dos israelenses judeus apoiam a solução de dois Estados, contra 40% contrários e 8% sem opinião. Por outro lado, 64% dos entrevistados não acreditam que tal solução seja alcançada algum dia. Somente 28% dos israelenses judeus têm esperança de que um dia seja criado um Estado palestino ao lado do Estado de Israel.
Já no lado palestino, há uma maior tendência a aceitar a solução de dois Estados, indicando uma visão clara da aceitação da realidade do Estado de Israel. Porém, há uma nítida diferença entre os habitantes dos dois territórios palestinos: 70% dos palestinos da Cisjordânia aceitam a solução de um Estado palestino vivendo ao lado do Estado de Israel, enquanto somente 48% dos habitantes da Faixa de Gaza aceitam tal situação.
Ou seja, há chances de aprovação do acordo em caso de um referendo.
No entanto, evidentemente, isso depende do teor do acordo que será obtido na mesa de negociações (se, de fato, houver acordo). A solução de dois Estados requer muito mais que a simples aceitação da existência do outro. Há questões sensíveis a serem negociadas que parecem colocar os dois lados em posições irreconciliáveis.

Um dos principais problemas é quanto ao status de Jerusalém. A maioria dos palestinos não aceitará um Estado sem Jerusalém Oriental como capital. No lado israelense, por sua vez, há um grande contingente que não aceitará a divisão da cidade. O governo de Netanyahu já disse que Jerusalém é a capital "eterna e indivisível" de Israel.
Quanto aos assentamentos, muitos israelenses acreditam que algumas colônias devem permanecer sob controle israelense. Isso os palestinos podem até aceitar, desde que haja uma troca equilibrada de territórios. Mas os assentamentos em Jerusalém (considerados bairros pelos israelenses) não serão tolerados pelos palestinos. Nem outros que possam impedir um Estado palestino contíguo.
O próprio Netanyahu indica pouca disposição de parar a construção dos assentamentos. Mesmo com as negociações sendo anunciadas com júbilo pela comunidade internacional, o governo israelense já noticiou que irá construir mais de 2.000 casas em territórios ocupados em Jerusalém Oriental e em outras partes da Cisjordânia. Evidentemente, isso se deve à pressão de parte do seu governo, do já mencionado partido Casa Judaica e mesmo de políticos de dentro de seu próprio partido, o Likud. Netanyahu sabe que para manter a coesão de seu gabinete, precisa achar uma fórmula entre as pressões dos Estados Unidos (que já declarou que os assentamentos são "ilegítimos") e a amizade de políticos dos partidos pró-colonização dentro de seu governo.
Outra questão sensível é a situação dos refugiados palestinos. Muitos palestinos que vivem em campos de refugiados em países como Líbano, Jordânia e Síria, sonham em retornar para o território em que moravam antes das guerras de 1948-49 e 1967. Isso significa que muitos palestinos almejam residir em lugares no interior do Estado de Israel. A esmagadora maioria dos israelenses nega com veemência esse pedido, pois haveria uma radical transformação demográfica em Israel, que não mais teria uma maioria judaica e, portanto, deixaria de ser um Estado judeu. Por outro lado, é difícil um líder palestino abrir mão completamente de lutar por algum benefício para os refugiados. O retorno é algo quase impossível. Talvez uma opção a ser negociada seria uma indenização, por meio da criação de um fundo internacional, com contribuições de Israel (o que também é difícil, dadas as condições financeiras do país).

Com todos esses desafios postos, já se sabe, de antemão, que as negociações serão extremamente complicadas e que um acordo, que seja aceito como justo por ambas as partes, terá grandes dificuldades em ser alcançado.

Ver também:

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Crise no Egito

Atualizado em 17 de agosto de 2013, às 18:00h (horário de Brasília)

Ver também: O que está acontecendo no Egito?


O dia 14 de agosto de 2013 foi marcado pela violência entre apoiadores do presidente deposto Mohammed Mursi e as forças armadas.
Mursi foi eleito presidente em junho 2012, nas primeiras eleições democráticas na história do Egito. Em 3 de julho de 2013, após meses de deterioração da situação política, as forças armadas derrubaram o presidente.

Em meados de julho de 2013, apoiadores de Mursi se reuniram em torno da Mesquita Rabaa al-Adawiya, no nordeste do Cairo, exigindo a renúncia do atual governo e o retorno de Mursi à presidência. Por sua vez, o governo vinha demandando que os protestos terminassem, mas os manifestantes não abandonavam o local nem deixavam de marchar pelas ruas da capital. Então, no dia 14, o Exército chegou por volta das 7 da manhã e abriu fogo contra a multidão, matando vários manifestantes. No momento, os números divergem. Integrantes da Irmandade Muçulmana alegaram que mais de 2.000 pessoas foram mortas. A última declaração oficial apontou 638 mortos, 43 dos quais eram policiais, e mais de 4.000 feridos.


O governo decretou estado de emergência por um mês que entrou em vigor às 16h (horário local, 11h pelo horário de Brasília).
Por conta da explosão de violência, o Vice-Presidente interino, o ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Mohammed El-Baradei, renunciou. O grupo Tamarod (Revolta), oposto a Mursi, declarou repúdio pela renúncia de El-Baredei, que segundo o grupo, fugiu de suas responsabilidades.
Os Estados Unidos declararam que a violência era "deplorável" e anunciaram que estão analisando a ajuda militar ao Egito.
Outros atores internacionais também condenaram a ação militar. União Europeia, Nações Unidas, França, Grã-Bretanha, Irã, Turquia, Japão, Itália, Catar, dentre outros, demandam urgentemente que todos se abstenham de usar a força e busquem uma solução negociada. Por outro lado, a Arábia Saudita manifestou apoio aos militares.
Enquanto isso, no dia 15, integrantes da Irmandade Muçulmana passaram para a ofensiva. Milhares de manifestantes voltaram às ruas, em várias cidades do país, afrontando o estado de emergência proclamado no dia 14, além de incendiarem um prédio governamental no distrito de Gizé, no Cairo.
No dia 16 de agosto, a Irmandade Muçulmana convocou seus seguidores para se manifestarem no que chamaram "Dia de Fúria". Apoiadores de Mursi saíram às ruas por todo o país. Houve confrontos  entre manifestantes e policiais no Cairo, em Alexandria, Ismailyya, Damietta, Port Said e Tanta.
No dia 17, forças militares governamentais fizeram um assalto à Mesquita Al-Fatah, próxima à Praça Ramsés, no Cairo, onde apoiadores de Mursi estavam entrincheirados desde o dia anterior.
Fontes do Ministério da Saúde do Egito divulgaram que o número de mortos nos confrontos dos dias 16 e 17 chegou a 173.
A situação no Egito permanece profundamente grave.

Ver também:
O que está acontecendo no Egito?
A nova Constituição do Egito
Lei e política no Egito
O futuro do Egito

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

As negociações entre israelenses e palestinos

Há alguns dias, vimos que israelenses e palestinos retornaram à mesa de negociações para tentar dar um fim ao conflito Israel-Palestina. Resultado da insistência do Secretário de Estado norte-americano John Kerry, as negociações foram iniciadas formalmente no dia 29 de julho de 2013 em um jantar em Washington e estão previstas para durar 9 meses.
Mas, afinal, o que estará sobre a mesa durante as conversações?



As negociações foram reiniciadas depois de 3 anos de paralisação por conta de divergências entre os dois lados. O jantar ocorrido em Washington, na verdade, não foi o início das negociações, mas um encontro entre as partes para sinalizar boas intenções. Os negociadores serão Tzipi Livni (Ministra da Justiça israelense e ex-Ministra do Exterior no governo de Ehud Olmert) e Saeb Erekat (político e acadêmico palestino que há 20 anos participa de negociações com israelenses).
O fato é que diversas questões delicadas do conflito entre israelenses e palestinos deverão ser discutidas, muitas delas centrais para a auto-percepção das duas nações.
Abaixo, seguem alguns pontos que serão negociados.

Fronteiras:
O primeiro ponto a ser discutido. A negociação parte do reconhecimento mútuo de que a solução do conflito deverá vir com a criação de dois Estados: o Estado de Israel e o Estado da Palestina (englobando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza). Porém, as fronteiras do Estado palestino são alvo de divergência entre as partes. Os palestinos querem que a fronteira da Cisjordânia seja baseada nas "fronteiras de 1967", isto é, que siga a linha demarcatória que existia antes da Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967 (ver O que é a Questão Palestina, 2ª  parte). Os palestinos, no entanto, aceitam uma alteração naquela fronteira, com a condição de que haja uma troca de territórios equilibrada. Ou seja, a troca não deve ser apenas quantitativa, mas também qualitativa (como uma troca de áreas férteis por áreas férteis).
No entanto, a questão das fronteiras está relacionada a duas outras questões mais fundamentais: o status de Jerusalém e os assentamentos judaicos.

Jerusalém:
Após a Primeira Guerra Árabe-Israelense, entre 1948 e 1949 (ver O que é a Questão da Palestina, 1ª parte), Jerusalém ficou dividida: Jerusalém Ocidental sob controle israelense e Jerusalém Oriental sob controle jordaniano (a Jordânia ocupou toda a Cisjordânia no desfecho da guerra de 1948-49). Em Jerusalém Oriental estão localizados importantes lugares sagrados para judeus, cristãos e muçulmanos. Na cidade está localizado o Muro das Lamentações (ou Muro Ocidental), parte do Templo Judeu que existiu na Antiguidade e foi destruído pelos romanos em 70 D.C., durante a Revolta Judaica contra o Império Romano (66-73 D.C.). O Templo de Jerusalém era o centro da vida religiosa judaica da Antiguidade, pois acredita-se que o próprio Deus (Yahweh) ordenou a construção da primeira versão do templo (construído por Salomão, segundo a crença judaica e cristã). O templo foi reconstruído por Herodes no século I D.C. e até hoje desperta profundas emoções nos judeus.
Por outro lado, a cidade também abriga a Esplanada das Mesquitas (ou Haram ash-Sharif). No local há duas importantes mesquitas: a) a Mesquita do Domo da Rocha, que possui uma cúpula toda em ouro (por isso é chamada também de Mesquita da Cúpula Dourada) e hoje é um dos símbolos de Jerusalém, pois pode ser vistas a longas distâncias; b) a Mesquita de Al-Aqsa (A Distante), muito importante na crença muçulmana, pois acredita-se que foi deste ponto em que Mohammed (Maomé) fez sua jornada noturna. O Muro Ocidental também é venerado pelos muçulmanos, sendo chamado de Al-Buraq (segundo a crença muçulmana, Al-Buraq foi o cavalo alado que conduziu Maomé em sua jornada noturna). Portanto, o lugar é altamente sagrado para os muçulmanos - o terceiro mais sagrado, depois de Meca e Medina.
Não é surpreendente, portanto, que Jerusalém seja vista como um local altamente simbólico. Isso, por sua vez, faz com que a "Cidade Santa" seja incluída nas duas narrativas nacionalistas e, logo, seja alvo de acaloradas contendas políticas.
Jerusalém está no centro da disputa entre israelenses e palestinos hoje. Em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, Israel conquistou Jerusalém Oriental. Em 1980, Israel anexou-a e incluiu em suas "Leis Básicas" (espécie de Constituição) o artigo que diz que Jerusalém é a "capital una e indivisível" de Israel.
Os palestinos querem que Jerusalém Oriental seja incluída em seu Estado e querem fazer da parte Leste da cidade sua capital. Os israelenses, por sua vez, não aceitam dividir a cidade.

Assentamentos:
Os Assentamentos Judaicos são colônias construídas nos territórios ocupados por Israel após a Guerra dos Seis Dias, nos quais vivem judeus israelenses. Há assentamentos na Cisjordânia e nas Colinas de Golã (Síria). Os assentamentos na Faixa de Gaza foram desmantelados no processo de desocupação do território em 2005. Na Cisjordânia, segundo estatísticas da organização israelense B'Tselem, em 2011 havia cerca de 515 mil colonos vivendo em 121 assentamentos . Muitos judeus se dirigiram para essas áreas por conta de crenças religiosas, considerando a Cisjordânia como "Judeia e Samaria", uma área dada aos judeus por Yawheh e que não pode ser cedida aos palestinos. No entanto, há também muitos judeus que foram morar em colônias por motivos econômicos. A moradia nas colônias era mais barata do que no território de Israel e o governo em muitas ocasiões estimulou a ida de judeus israelenses para esses locais. Alguns desses assentamentos estão em Jerusalém Oriental e são considerados "bairros" pelos israelenses e não "colônias". Os principais deles e que têm gerado as maiores controvérsias são Ma'ale Adumin e Har Homa, pois o governo de Israel tem autorizado constantemente novas construções nesses assentamentos.
Os palestinos demandam a evacuação de todos os assentamentos para que um Estado palestino tenha contiguidade. Os israelenses pedem que alguns sejam mantidos, principalmente os localizados no limite entre a Cisjordânia e Israel. Os palestinos aceitam, por princípio, a manutenção de alguns desses assentamentos em troca de outras porções de território. No entanto, outros são mais problemáticos. O assentamento de Ariel, por exemplo, com 18 mil habitantes, é demandado por Israel. Porém, Ariel está localizado bem no interior da Cisjordânia, ao sul de Nablus.
Os palestinos haviam imposto como condição de negociação a paralisação completa de construção dos assentamentos, o que não foi feito. Aliás, esse foi o motivo do fim das negociações em 2010.
O governo israelense alega que precisa construir assentamentos para dar conta do crescimento demográfico de Israel. Já os palestinos alegam que a construção mina o processo de paz, pois no longo prazo poderia significar o fim de qualquer possibilidade de existência de um Estado palestino viável.

Refugiados palestinos:
Um dos pontos mais polêmicos das negociações será a questão dos refugiados, palestinos que fugiram ou foram expulsos de suas casas durante a guerra civil entre árabes e sionistas, entre novembro de 1947 e maio de 1948, e durante a Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-49). Segundo dados da Agência da ONU dedicada exclusivamente aos refugiados palestinos (UNRWA), cerca de 760 mil palestinos se tornaram refugiados nesse período (alguns argumentam que foram muito mais). Além disso, outros palestinos se tornaram refugiados como consequência da Guerra dos Seis Dias em 1967. Hoje, segundo a UNRWA, são cerca de 5 milhões. Vivendo em campos de refugiados em várias partes do Oriente Médio, como Líbano, Jordânia, Síria e Iraque, muitos deles vivem em uma condição precária, sem direitos plenos (como no Líbano), ou como vítimas de represálias em situações de guerra (como no Iraque em 2003).
Os palestinos demandam o "direito de retorno" dos refugiados, baseados em resoluções da ONU de 1949, que determinava que Israel deveria permitir o retorno daqueles que desejassem.
Israel rejeita esse pedido, alegando que esse afluxo de árabes descaracterizaria Israel como "Estado judeu". Aliás, uma demanda do Primeiro Ministro israelense Benjamin Netanyahu é que Mahmoud Abbas (Presidente da Autoridade Palestina) reconheça Israel como Estado judeu. Abbas nega, afirmando que isso poderia pôr em risco a segurança jurídica e civil dos árabes israelenses (árabes que permaneceram em Israel depois da guerra de 1948-49). Além disso, isso também impossibilitaria a demanda pelo direito de retorno dos palestinos refugiados.

Os pontos acima são as principais questões nas negociações e que podem gerar os maiores embates entre as duas partes. Questões como segurança, prisioneiros e recursos hídricos também devem ser discutidas. 

Segurança:
A segurança provavelmente será discutida desde o início e parece não gerar muitas controvérsias. Israel demanda que o Estado palestino seja desmilitarizado e que o futuro governo palestino tome todas as medidas para evitar o terrorismo. O argumento de Israel é que após a retirada da Faixa de Gaza em 2005, o Hamas ocupou o território e daí lança foguetes contra o território israelense. Os palestinos tendem a aceitar algumas dessas demandas com reticências. Aceitam o argumento da segurança de Israel, mas desejam que seu Estado não seja uma mera ficção, sem soberania plena.

Prisioneiros:
Esse foi, na verdade, a primeira questão a ser tratada. Israel aceitou libertar 104 prisioneiros palestinos como gesto de boa vontade para dar início às negociações. Segundo a organização israelense B'Tselem, no final de junho de 2013 havia cerca de 4.800 prisioneiros palestinos em prisões israelenses. Alguns deles estão detidos segundo as chamadas "prisões administrativas", em que indivíduos são presos mesmo sem acusação formal e podem ficar nessa situação por até 6 meses. Há diversos casos de detenção de crianças, o que tem sido alvo de duras críticas internacionais.

Recursos hídricos:
 O Oriente Médio é uma área do mundo onde a água é um bem escasso. Israel controla grande parte da água do Rio Jordão e aquíferos da Cisjordânia. O consumo de água pelos palestinos é severamente restrito devido a necessidades militares, tornando a vida da comunidade palestina altamente precária devido ao caráter vital da água. Além disso, em muitas áreas, a água que falta aos palestinos flui para os assentamentos judaicos. Na tentativa de remediar essa situação, palestinos constroem cisternas para captar a água da chuva. Porém, em algumas ocasiões, o Exército de Israel demoliu essas construções alegando que foram erguidas sem permissão. Muitos consideram a água uma questão central que não é devidamente tratada nas negociações.

Na próxima postagem, serão avaliadas as possibilidades de efetivação das negociações, levando em consideração os pontos listados acima.

Ver também:

terça-feira, 23 de julho de 2013

O sombrio horizonte do Iraque

Nos últimos meses, a violência tem se intensificado no Iraque. Centenas de pessoas foram mortas em recorrentes atentados com carros bomba ou por meio de militantes suicidas. A luta entre diferentes segmentos da população tem degenerado em uma violência sem fim, que beira a guerra civil. Mas afinal, há perspectivas de uma estabilização no país?


As tropas norte-americanas deixaram o Iraque em dezembro de 2011 após ocuparem o país desde a invasão de 2003 (Ver 10 anos da Guerra do Iraque parte 1 e parte 2). Embora fosse uma demanda de muitos iraquianos, a retirada dos soldados norte-americanos abriu caminho para uma atuação mais forte de grupos extremistas, que têm a intenção de transformar o Iraque em um Estado islâmico. Após a saída dos Estados Unidos, o governo iraquiano não foi capaz de prover segurança para sua população, por carecer tanto de meios militares diretos para enfrentar os extremistas, quanto de especialização em inteligência para evitar os atentados.
Além disso, políticos têm sido frequentemente acusados de usar a violência para eliminar adversários, na busca por vitórias políticas que não foram alcançadas nas urnas.  
Porém, o que temos visto nos últimos meses é a intensificação da violência direcionada a civis. Somente no mês de maio de 2013, mais de 900 pessoas foram mortas por explosões de carros bomba ou por ataques de militantes suicidas. Dentre todos os grupos que se sobressaem nessa tática está a organização "Estado Islâmico do Iraque" (EII), um grupo com ligações com a Al-Qaeda.
O EII foi criado em 2005 por Abu Musab Al-Zarqawi - um jordaniano conhecido por travar lutas em várias partes do Oriente Médio - em meio à luta dos insurgentes contra as tropas dos Estados Unidos. Surgiu da união de vários grupos extremistas em atuação no país, como a Al-Qaeda no Iraque. É um grupo de orientação muçulmana sunita e seu alvo principal é a comunidade de muçulmanos xiitas (a maioria da população do país) em mesquitas, mercados e em ruas apinhadas de civis. O período em que esteve mais ativo foi entre 2006 e 2007. No momento, o grupo anunciou que se uniu à Frente An-Nusra, organização extremista em atuação na Síria, formando o "Estado Islâmico do Iraque e do Levante". A união foi confirmada por um dos líderes do grupo, mesmo contra as determinações de Ayman Al-Zawahiri, líder da Al-Qaeda após a morte de Osama bin Laden.
Assim, a relação entre o EII e o centro de comando da Al-Qaeda parece estar estremecida. Porém, o importante a destacar é que os últimos atentados demonstram claramente inspiração nas táticas da Al-Qaeda, como quando em apenas uma noite durante o Ramadã (mês sagrado dos muçulmanos), 11 carros bomba explodiram e seis bombas em estradas foram detonadas. Os ataques foram coordenados, ocorrendo em um intervalo de apenas 2 horas, e matou pelo menos 41 pessoas, deixando outras dezenas feridas. Os atentados ocorreram em vizinhanças de maioria xiita.
Portanto, o que podemos ver no Iraque é uma situação clara de violência entre comunidades, o que, com efeito, pode levar a uma guerra civil. Analistas políticos afirmam que esse horizonte não está tão distante porque mesmo políticos que participam do processo eleitoral têm recorrido ao tema das divisões religiosas para se promoverem, ao invés de trabalharem para amenizar as tensões. Na verdade, os políticos colaboram para o clima de instabilidade. Os xiitas estão no poder no país - o presidente é o xiita Nuri Al-Malik. Já os sunitas reivindicam mais poder para sua comunidade. Não raro, as desavenças chegam a níveis de violência aberta.
Assim, o país parece estar voltando à situação de 2006, quando se iniciou a guerra civil no Iraque. Na ocasião, militantes ligados à Al-Qaeda explodiram um carro bomba em uma mesquita xiita em Samara. Como represália, milícias xiitas atacaram alvos sunitas. Agora, algo similar está ocorrendo. Em julho de 2013, um militante suicida sunita se explodiu em uma cerimônia fúnebre de um líder xiita na cidade de Muqqadyya. Como represália, xiitas expulsaram várias famílias sunitas das redondezas e uma mesquita sunita foi atacada. Não podemos afirmar com certeza que o ciclo de violência será reativado como em 2006, mas o terreno está fértil para esse desdobramento.
O que fica claro é que a invasão norte-americana abriu a caixa de pandora das antigas rivalidades entre as comunidades. Embora o país estivesse sob uma infame ditadura, e muitos iraquianos esperassem ansiosamente pela queda de Saddam Hussein, a desestruturação do Estado iraquiano em maio de 2003 abriu espaço para a violência desenfreada no país, que degenerou na guerra civil que se desenvolveu com mais vigor em 2006. Os Estados Unidos conseguiram conter a violência extrema a partir de 2007. Porém, ao deixarem o país, as rivalidades foram revigoradas.
A situação no Iraque se agravou ainda nos últimos dois anos por conta da instabilidade na região após as revoltas nos países árabes, principalmente por conta da guerra civil na Síria. Mesmo que o governo iraquiano tente controlar a entrada e saída de pessoas de seu território, as fronteiras entre os dois países se mantêm porosas e o que vemos é o constante fluxo de militantes extremistas entre o território sírio e iraquiano. A união do Estado Islâmico do Iraque e da Frente An-Nusra demonstra que há um contato muito próximo entre os extremistas lutando nos dois fronts.


Ainda que o governo iraquiano tente por todos meios evitar a escalada da violência, as tensões entre xiitas e sunitas estão altas, enquanto o Estado iraquiano não dispõe de condições de conter os grupos extremistas. A possibilidade de guerra civil é grande e os iraquianos sentem-se abandonados depois de uma ocupação estrangeira de quase uma década que levou o país às ruínas.
Assim, a estabilidade tão almejada no Iraque ainda parece um sonho distante.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

O que está acontecendo no Egito?

Atualizado em 14 de agosto de 2013, 15:30h (horário de Brasília)

Nos últimos dias, temos assistido a um agravamento das tensões no Egito. Desde o dia 3 de julho de 2013, quando o Presidente Mohammed Mursi foi deposto pelos militares, são frequentes os choques entre o as forças armadas e apoiadores do presidente deposto, especialmente membros da Irmandade Muçulmana. Em 14 de agosto de 2013, centenas de pessoas foram mortas quando o Exército agiu para desocupar uma praça no Cairo onde membros da Irmandade Muçulmana estavam reunidos exigindo a recolocação de Mursi no cargo. O mundo olha atentamente o que está ocorrendo no país.
Mas o que exatamente está acontecendo no Egito?



O Egito passa por um período de grande instabilidade política desde que enormes manifestações populares derrubaram o ex-Presidente Hosni Mubarak, em 25 de janeiro de 2011.
Mubarak governava o Egito desde 1981, quando assumiu o cargo após o assassinato de Anwar al-Sadat. Seu governo foi marcado pelo autoritarismo, pelas eleições de fachada e pela grande influência das Forças Armadas. Na política externa, foi caracterizado pelo alinhamento aos Estados Unidos e pela colaboração com Israel no controle da Faixa de Gaza (O Egito assinou um acordo de paz com Israel em 1978).
Inspirados pela revolução na Tunísia, que derrubou o ditador Zine al-Abidine Ben Ali, em janeiro de 2011, os egípcios foram à Praça Tahrir (Praça da Libertação), no centro do Cairo, exigir a renúncia de Hosni Mubarak. Após vários dias de tumultos e ataques de tropas governamentais aos manifestantes, Mubarak renunciou.
Abriu-se, após isso, um momento de indefinição política. Após a queda de Hosni Mubarak, assumiu o poder no país, provisoriamente, o Comitê Superior das Forças Armadas (CSFA). A política do governo provisório de postergar as eleições presidenciais gerou enormes protestos. Muitos acusavam o CSFA de não permitir a transição para uma política verdadeiramente democrática, já que as Forças Armadas eram um dos pilares do governo Mubarak.
Decorreu um momento de luta política para que uma eleição presidencial fosse agendada, em que os egípcios pudessem ir às urnas decidir democraticamente quem seria o primeiro presidente pós-Mubarak. Após hesitações, o CSFA concordou em agendar eleições para meados de 2012.
À medida que o pleito se aproximava, iniciaram-se movimentações para a organização de partidos políticos. O movimento da Praça Tahrir foi, em grande parte, um levante popular, ao qual os grandes partidos e líderes opositores só se juntaram posteriormente. Como foi um movimento espontâneo, carecia das bases para organizar um partido político com força para obter uma vitória.
Quem se destacou nesse processo foi a Irmandade Muçulmana. Contando com uma organização consolidada há várias décadas (o grupo foi criado em 1928), a Irmandade Muçulmana foi capaz de arregimentar um grande número de adeptos, dotados do impulso ideológico para buscar o poder político.
Nas eleições presidenciais de junho de 2012, dois candidatos foram para o segundo turno: Ahmed Shafik, ligado aos setores políticos próximos a Mubarak, e Mohammed Mursi, candidato do Partido da Justiça e Liberdade, agremiação ligada à Irmandade Muçulmana.
Mursi saiu vencedor no segundo turno, o que alçou a Irmandade Muçulmana, pela primeira vez em sua história, ao efetivo poder político no Egito. Além disso, o Partido da Justiça e Liberdade obteve a maioria dos assentos nas eleições parlamentares no início de 2012, o que lhe garantiu o poder de guiar a transição política no país, ao terem em suas mãos a capacidade de escrever a nova constituição.
O crescimento do poder da Irmandade Muçulmana assustou muitos políticos, especialmente os setores seculares e liberais, os agrupamentos populares e as minorias (como os cristãos coptas). Também gerou preocupação na comunidade internacional, especialmente em Israel e nos Estados Unidos, que temiam um governo islâmico no Egito, o que poderia alterar o equilíbrio de poder no Oriente Médio.
No entanto, Mursi parecia indicar um caminho de moderação. Em um primeiro momento, acreditava-se que a constituição a ser preparada para o novo regime político egípcio apresentaria fundamentação democrática e liberal. Por sua vez, isso fez com que Mursi começasse a sofrer críticas dos salafistas (que queriam que a constituição fosse baseada na Shari'a, a lei islâmica) e entre alguns membros da Irmandade Muçulmana.
Diante disso, a tendência se alterou e vários artigos da constituição passaram a incorporar elementos da Shari'a. Embora tenha referências às liberdades do povo e à proteção de judeus e cristãos, o projeto de constituição, em seu artigo 2, diz que "o Islã é a religião oficial do Egito" e que "os princípios da Shari'a são a principal fonte de legislação".
Revoltados com a guinada religiosa, os secularistas, os liberais, os grupos de esquerda, os cristãos e as feministas se reuniram em manifestações contra a política do presidente, acusando Mursi de estar transformando o Egito em uma "teocracia" e afirmando que as minorias e as mulheres seriam oprimidas por uma elite dirigente muçulmana masculina.  Mursi reagiu aos protestos dizendo que quem não concordasse com a constituição proposta, que votasse contra no referendo. Isso não aliviou as críticas, já que os membros da oposição dizem ser impossível realizar uma discussão séria em tão pouco tempo.
Para piorar a situação política, Mohammed Mursi emitiu um decreto no fim de novembro que lhe concedia amplos poderes, inclusive dando-lhe maior poder que a Suprema Corte do país. Vários setores da sociedade egípcia passaram a condenar o decreto, afirmando que Mursi desejava se tornar um ditador pior que Mubarak.
Com isso, a Praça Tahrir voltou a figurar como centro dos protestos políticos e a violência eclodiu novamente. Prédios da Irmandade Muçulmana foram incendiados, as ruas do Cairo se tornaram um campo de batalha e confrontos entre islamistas e secularistas disseminaram-se para outras cidades.
Diante da revolta, Mursi revogou o decreto que amplia seus poderes.

Enfim, nos dias 15 e 22 de dezembro de 2012, foram realizadas as votações. Segundo a autoridade eleitoral egípcia, a Constituição foi aprovada com 63,8% dos votos. Oposicionistas acusam o governo de fraude. O presidente afirmou que as eleições foram legais e justas. Porém, o que ficou claro foi o boicote de grandes setores sociais no pleito. A abstenção foi de 68%. Ou seja, a Constituição foi aprovada por uma minoria dos egípcios aptos a votar.

No início de 2013, a situação piorou consideravelmente. Após a condenação de 21 pessoas pelo massacre durante um jogo de futebol em meados de 2012 provocou enormes manifestações, que redundaram em confrontos com policiais, em que resultaram em mais mortos.
O Presidente decretou uma lei de emergência que determinava toque de recolher entre 9 da noite às 6 da manhã. Além disso, permitia que qualquer cidadão pode ser suspeito aos olhos das forças policiais.
Os opositores criticaram de forma contundente o governo por tais medidas, que eles veem como a construção de uma ditadura.

Ao longo do ano, várias manifestações ocorreram contrárias ao Presidente. Os militares também começaram a mostrar insatisfação com o Presidente, já que Mursi adotou medidas que enfraqueceram as Forças Armadas. O clima político encaminhava-se para uma situação mais grave. No final de junho de 2013, os opositores começaram um movimento mais contundente de protestos. A Praça Tahrir voltou a ser palco de manifestações. Grupos contrários ao Presidente invadiram e incendiaram a sede da Irmandade Muçulmana. Choques entre opositores de apoiadores de Mursi causaram 16 mortes em dois dias.
Como o caos estava tomando conta do Cairo e de outras cidades do país, as Forças Armadas deram um ultimato de 48 horas ao Presidente. Como a situação não se acalmou, o Chefe do Exército, Abdel Fatah as-Sissi, anunciou, em 3 de julho de 2013, que o Presidente estava deposto.



As-Sissi anunciou ainda que a Constituição estava suspensa e que o Chefe do Judiciário, Adli Mansour, seria o Presidente interino até que novas eleições ocorram.
Apoiadores de Mursi acusam as Forças Armadas de "golpe" contra um Presidente que fora eleito democraticamente. O Exército afirma que o Presidente falhou em cumprir sua missão junto ao povo egípcio. Os ânimos estão exaltados.
Membros do Exército e políticos vêm buscando formar um governo transitório que organize eleições o mais breve possível. Chegou-se a aventar a indicação de Mohammed El-Baradei - um político secular e ex-Diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) - ao cargo de Primeiro Ministro. Porém, divergências entre os novos grupos no poder impediram que seu nome fosse efetivado. El-Baradei tem sido cotado para ocupar a Vice-Presidência.
No dia 9 de julho, uma coalizão de forças políticas, que incluíam o grupo religioso An-Nusra, concordaram em indicar como Primeiro Ministro o economista Hazem al-Bablawi. Mohammed El-Baradei foi indicado Vice-Presidente interino. No entanto, a coalizão governista é heterogênea e notam-se divergências no interior do governo, entre um grupo de oficiais militares mais "linhas-dura" e uma ala mais moderada que visa uma aproximação com os apoiadores de Mursi e são contra a concentração de poder na mão dos militares. El-Baradei chegou a criticar a ação das Forças Armadas no final de julho como "excessivo uso da força".

Enquanto isso, nas ruas, o ambiente é de caos e violência. Após a deposição de Mursi, apoiadores do ex-Presidente organizaram manifestações em massa contra o que dizem ser um "golpe" contra o Presidente eleito "legitimamente". Por outro lado, opositores de Mursi alegam que foi uma "revolução" contra um Presidente autoritário. Violentos combates entre apoiadores e opositores de Mursi, assim como entre simpatizantes do ex-Presidente e o Exército vêm provocando centenas de mortes nas últimas semanas. Em um dos episódios, simpatizantes de Mursi faziam uma manifestação em frente ao Quartel-General da Guarda Republicana. O Exército abriu fogo contra os manifestantes e o resultado foram 51 mortes. As Forças Armadas disseram que os manifestantes tentavam invadir o prédio e por isso atiraram. Os simpatizantes do ex-Presidente negam essa versão.
O episódio do dia 14 de agosto, porém, excedeu a violência precedente. Os apoiadores de Mursi estavam reunidos em torno da Mesquita Rabaa al-Adawiya, no nordeste do Cairo. Há dias o governo vinha demandando que os protestos terminassem, mas os manifestantes não abandonavam o local nem deixavam de marchar pelas ruas da capital. Então, no dia 14, o Exército chegou por volta das 7 da manhã e abriu fogo contra a multidão, matando vários manifestantes. Pelo menos 638 pessoas morreram.
O governo decretou estado de emergência por um mês que entrou em vigor às 16h (horário local, 11h pelo horário de Brasília).
No dia 15, integrantes da Irmandade Muçulmana passaram para a ofensiva. Milhares de manifestantes voltaram às ruas, em várias cidades do país, afrontando o estado de emergência proclamado no dia 14, além de incendiarem um prédio governamental no distrito de Gizé, no Cairo.
No dia 16 de agosto, a Irmandade Muçulmana convocou seus seguidores para se manifestarem no que chamaram "Dia de Fúria". Apoiadores de Mursi saíram às ruas por todo o país. Houve confrontos  entre manifestantes e policiais no Cairo, em Alexandria, Ismailyya, Damietta e Tanta. Até por volta das 15:30h (horário de Brasília), a Irmandade Muçulmana alegava que 45 pessoas foram mortas. A rede de televisão Al-Jazeera confirmou 41 mortos.
A situação no Egito permanece profundamente grave e alguns analistas políticos temem que o Egito esteja se dirigindo para uma guerra civil.


VER TAMBÉM:

A nova Constituição do Egito
Lei e política no Egito
O futuro do Egito

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O novo presidente do Irã

No último dia 14 de junho de 2013, os iranianos foram às urnas escolher seu novo presidente. Com uma expressiva votação, o que lhe garantiu a vitória ainda no primeiro turno, o clérigo Hassan Rohani foi eleito.
Mas, afinal, quem é Rohani? E qual o real papel que terá nas políticas interna e externa da República Islâmica do Irã?


Rohani é parte do bloco reformista do Irã. Opositor do atual presidente Mahmoud Ahmadinejad, ele defende uma postura diferente na política externa iraniana. Durante a campanha eleitoral, ele disse repetidas vezes que o Irã estava rumando a um caminho perigoso ao afrontar as potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos. Ele defendeu, inclusive, abrir um diálogo direto com Washington. No entanto, não deu sinais de que iria trabalhar para paralisar o programa nuclear iraniano. Por outro lado, em debates eleitorais, Rohani se posicionou assertivamente em prol de reformas políticas. Ele frequentemente propôs a discussão de tópicos como justiça, direitos civis e prosperidade econômica.

Rohani nasceu em 13 de novembro de 1948 no seio de uma família religiosa. Iniciou seus estudos em 1960. Em 1969, ingressou na Universidade de Teerã onde obteve o título de Bacharel em Direito. Ele possui Doutorado em Direito pela Universidade de Glascow, na Grã-Bretanha. Rohani foi ativo politicamente na oposição ao Xá Rehza Pahlevi e participou da política que culminou na Revolução Iraniana de 1979. Durante a Guerra Irã-Iraque foi membro do Supremo Conselho de Defesa. Eleito parlamentar diversas vezes, foi o negociador-chefe para assuntos nucleares durante o governo de Mohammed Khatami (1997-2005). Rohani fala, além de persa, árabe e inglês. Possui intensa atividade acadêmica, sendo autor de mais de 100 livros e 700 artigos.

Rohani foi o único clérigo que obteve permissão para participar das eleições. Sua vitória manifesta uma divergência interna no Irã, entre clérigos que defendem reformas no sistema político e aqueles que entendem que nada deve mudar. O principal representante da ala conservadora era Said Jalili, já que Ahmadinejad não poderia concorrer, pois já havia cumprido os dois mandatos permitidos pela lei.
Rohani não está no extremo do polo reformista. Alguns o consideram, na verdade, alguém "menos conservador". É preciso ressaltar que o Conselho dos Guardiães (uma das principais instituições do país e que escolhe o Líder Supremo) é quem avalia quais candidatos poderão concorrer. Dos quase 700 candidatos que se apresentaram, somente 10 puderam concorrer no pleito. Assim, vários candidatos com uma agenda mais contundente de reformas foram deixados de fora da disputa. Um forte candidato, o reconhecidamente reformista Akbar Hashemi Rafsanjani (presidente do Irã entre 1989 e 1997), foi impedido de concorrer pelo Conselho dos Guardiães, que alegou motivos de saúde e sua idade avançada.
Diante disso, Rohani recebeu apoio de várias figuras reformistas, como Rafsanjani e Khatami. O outro candidato de tendência reformista era Mohammed Reza Aref. Porém, Rafsanjani solicitou que Aref desistisse de concorrer para que o campo reformista votasse em massa em Rohani.

Após a confirmação da vitória, Rohani recebeu mensagens promissoras do presidente norte-americano Barack Obama, que, por meio de seu porta-voz, disse que a vitória de Rohani era um "sinal de esperança"  para o país, tanto em relação às reformas internas, quanto em relação à busca por uma resolução do impasse nuclear.
Contudo, por mais que a eleição de Rohani seja vista como promissora rumo a uma resolução das divergências nucleares, talvez ele não tenha condições de levar adiante seus projetos. O presidente do Irã tem a seu cargo algumas atribuições relevantes. Como Chefe de Governo e como a figura central do Poder Executivo, tem a responsabilidade de representar o país em fóruns internacionais, elaborar a política econômica e formular programas sociais e educacionais. Além disso, o presidente tem alguma voz nas discussões sobre a o grau de permissão de atuação da imprensa. Porém, ele é o segundo na hierarquia do país. Assim, quanto à política externa e a questões de caráter de fundação da República, quem tem a palavra final é o Líder Supremo, atualmente o Aiatolá Ali Khamenei. Por isso, o Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, manifestou ceticismo com o resultado das eleições e solicitou à comunidade internacional que permaneça com as sanções ao Irã.

A vitória de Rohani é um claro indicativo que os iranianos almejam reformas no sistema político e querem evitar uma escalada militar que poderia resultar em uma guerra, seja contra Israel, seja contra os Estados Unidos. O comparecimento às urnas foi de cerca de 72%, bem inferior aos 89% das últimas eleições. Por outro lado, o pleito foi bem mais tranquilo em relação a 2009. Nesse ano, uma onda de protestos (as maiores manifestações desde a revolução) contra a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad culminou em violência e centenas de mortos. Os manifestantes alegaram que a eleição fora fraudulenta e que maquinações políticas haviam impedido que o reformista Mir-Hussein Moussavi vencesse. Em 2013, nenhum candidato com a agenda de Moussavi teve permissão de concorrer. De todo modo, a busca por reformas se manteve nas atuais eleições. A escolha de uma figura de tendência reformista, ainda no primeiro turno, representa um claro indicativo da demanda por mudanças entre os iranianos.


O Irã passa por severas dificuldades econômicas, causadas pelas sanções internacionais referentes ao seu programa nuclear. Além dos desafios econômicos, Rohani terá pela frente um combate feroz contra seus adversários que não querem permitir qualquer reforma no regime do país.
Devemos aguardar os próximos acontecimentos para vermos até onde poderá ir o novo presidente.

domingo, 9 de junho de 2013

O que está acontecendo na Turquia?

Atualizado em 17 de junho de 2013

Nas últimas semanas, a Turquia vem passando por intensos combates de rua entre manifestantes e forças do governo. Protestos que se iniciaram em Istambul se espalharam para dezenas de cidades do país, quatro pessoas morreram, outras centenas ficaram feridas e milhares foram presas. Trata-se de um fenômeno inaudito em um país que tem se mantido relativamente estável nos últimos anos e que parecia estar incólume às revoltas que eclodem no Oriente Médio e no Norte da África desde o fim de 2010. Mas, afinal, o que está acontecendo na Turquia?



Embora tenha atraído a atenção da mídia há poucos dias, as manifestações de rua se iniciaram em 1º de maio de 2013, quando um grupo de jovens tentava evitar que o governo derrubasse árvores no Parque Gezi, em Istambul. O projeto do governo é remover o parque para dar lugar a um prédio que irá abrigar um shopping center. Muitos turcos se mostraram contrários ao projeto, afirmando que o parque é uma das poucas áreas verdes remanescentes da cidade. Os manifestantes se mostraram indignados pelo fato de uma área pública ser destruída para dar lugar a um empreendimento comercial privado.
No final de maio, os protestos se intensificaram. No dia 28, cerca de 100 jovens fizeram uma manifestação pacífica, se posicionando no parque para evitar que as máquinas dessem início ao trabalho. No dia 30, o governo enviou a polícia para dispersar o grupo. As forças policiais fizeram uso de gás lacrimogêneo e canhões de água e foi acusada de uso excessivo da força. Rapidamente, os manifestantes pediram auxílio pelas redes sociais na Internet e logo chegaram centenas de pessoas à Praça Taksim, ao lado do parque, local que se tornou o centro das manifestações. A partir de então, os confrontos se espalharam para outras cidades, como a capital, Ankara, e as cidades Izmir e Adana.
Apesar do estopim para as manifestações ter sido a destruição do parque, a extensão dos protestos, assim como a violência desencadeada com a tentativa da polícia em dispersar os manifestantes, indicam que algo mais profundo está por trás desse fenômeno.
Os manifestantes crescentemente vêm fazendo duras críticas ao governo do Primeiro Ministro Recep Tayyip Erdogan (lê-se "er-do-wan"). Eles alegam que Erdogan está se tornando cada vez mais autoritário, não levando em consideração a vontade da população em diversos projetos. Vale dizer que uma rua importante próxima ao Parque Gezi foi totalmente alterada nos últimos anos, onde prédios antigos foram derrubados para dar lugar a casas luxuosas e caros centros comerciais. Além disso, Erdogan é acusado de querer "islamizar" o país, ao aprovar leis que contrariam os costumes seculares de grande parte da população turca, como a que proíbe a publicidade de bebidas alcoólicas e limita o horário de funcionamento de lojas que vendem bebidas até às 22h. Essa lei foi aprovada no final de maio de 2013.
Uma das demandas dos manifestantes é a convocação de novas eleições, o que foi prontamente rejeitado pelo governo.
Erodgan está no poder desde 2003, pelo Partido da Justiça e do Desenvolvimento, um grupo com orientações islamistas. Foi reeleito em 2011, porém com uma votação pouco acima dos 50%. Muitos daqueles que votaram no partido de Erdogan anteriormente, especialmente por causa de sua política econômica, ultimamente têm escolhidos outros partidos, afirmando que Erdogan tem se tornado cada vez mais autoritário e se aproximado de grupos muçulmanos conservadores.
O Primeiro Ministro recusa totalmente a ideia de que esteja ocorrendo uma "Primavera Turca" e acusa os partidos de oposição de estarem incitando as pessoas aos protestos para obterem ganhos políticos. Com efeito, muitos grupos de esquerda e nacionalistas se juntaram aos protestos, mas as manifestações tiveram início entre jovens ativistas, agindo individualmente, e grupos secularistas não necessariamente ligados a algum partido político.
A Turquia é apresentada internacionalmente como um experimento de sucesso de secularismo no Oriente Médio. Porém, os recentes acontecimentos no país têm despertado preocupação entre os parceiros internacionais. O Presidente norte-americano Barack Obama criticou as ações do governo como excesso de força. Tal declaração é de suma importância, pois os Estados Unidos são os principais aliados da Turquia. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial,  Washington tem um interesse especial no país. Durante a Guerra Fria, a proximidade se dava em função do perigo soviético. A Turquia é integrante da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Agora, nesse início de século XXI, os Estados Unidos veem na Turquia um estabilizador do Oriente Médio e um parceiro na luta contra o terrorismo. 

O Primeiro Ministro demandou fortemente que os protestos cessassem e que a ordem fosse restabelecida. Para isso, mandou as forças de segurança para dispersar as multidões nas ruas. Erdogan reuniu-se com manifestantes para ouvir duas reivindicações. No entanto, o acordo não foi obtido e, em 15 de junho, o Primeiro Ministro deu uma ordem para a polícia "limpar" a Praça Taksim (ocupada pelos manifestantes havia duas semanas). A confrontação foi grave, houve várias pessoas feridas e presas. No dia seguinte, Erdogan foi aclamado por uma multidão de apoiadores. Em comunicado ao país, solicitou que os manifestantes não voltassem à praça.
Contudo, as manifestações têm continuado. Resta saber quem, no fim das contas, irá vencer essa queda de braço ou se algum tipo de compromisso será alcançado entre as partes.